terça-feira, 7 de janeiro de 2014

É preciso ousadia

Jacques Sapir, economista francês, é muito conhecido pelos seus muitos escritos e intervenções defendendo a dissolução da zona euro e, no caso francês, mesmo a saída unilateral (o que, aliás, causaria a dissolução do euro), como, por exemplo, no seu livro“Faut-il sortir de l’euro?”, Paris, Le Seuil, 2012. Numa entrevista recente ao jornal grego Kefalaio (Capital), aborda a questão do apoio ao euro por forças políticas e sectores diferentes do capital.

Sapir considera que, mesmo no capital, há interesses contraditórios em relação ao euro, que favorece principalmente o sector financeiro e grande industrial, neste cãso principalmente o das grandes empresas deslocalizadas, enquanto que o euro é prejudicial às empresas industriais e comerciais tradicionais, de menor dimensão. Da mesma forma, só uma elite de 5 a 10% da população beneficiaria do euro, ao contrário das classes populares (operariado, pequenos empregados e funcionalismo subalterno ou administrativo de qualificação secundária) e mesmo das classes médias (pequenos proprietários, empregados qualificados e quadros).

A afirmação de Sapir que merece reflexão é que, presume-se que em França, “vê-se nas sondagens que estas camadas populares estão largamente ganhas para a ideia de que o euro é hoje um mal económico”.

E continua: “O principal problema é, por um lado, a falta de autonomia do capital industrial tradicional face ao capital financeiro e, por outro, a dimensão ideológica, pode-se dizer que religiosa, da ligação ao euro dos partidos da esquerda tradicional”.

Se é esta a situação na França, não tenho dados sobre a Itália, outro país decisivo para a manutenção da zona euro. Dos países com intervenção da troika, o povo cipriota parece estar contra o euro, por grande maioria, mas o mesmo não se passará com os gregos, o que poderá justificar a posição acomodatícia e ambígua da Syriza.

E em Portugal? Quanto aos factores económicos apontados por Sapir, provavelmente até serão mais acentuados do que na França, tendo em conta a fraca capitalização das nossas PME e a sua dependência do crédito para investimento. Também o que decorre da estrutura de classes, num país em que, ao contrário da generalização que por vezes se faz em relação a uma pretensa desproletarização e ascensão de “uma” classe média, os rendimentos do trabalho são inferiores a 50% do rendimento nacional disponível, o rendimento mensal médio é de 1300 €, o rendimento médio mensal do trabalho é de 680 € e 43,2% das pessoas (a maior percentagem da Europa) se situa no mais baixo quintil da distribuição dos rendimentos. É tudo "classe média"?... Em relação à França e eventualmente outros países, segundo Sapir, a nossa diferença está na situação subjectiva, quanto a uma rotura radical com a política hegemónica da direita europeia (com ajudas do centro-esquerda) e à vontade de sair do euro.

Já em 2009 um estudo do Parlamento Europeu revelava que, para 62% dos portugueses, a entrada no euro tinha sido um erro e que a manutenção do escudo teria protegido melhor contra a crise. Já este ano também se manifesta o “europessimismo”, com 68% dos portugueses inquiridos (média europeia de 51%) a acharem que as políticas de austeridade fracassaram, beneficiando apenas a Alemanha e os outros países ricos, e 81% a pensar que há alternativas melhores à política de austeridade. No entanto, em meados de 2012, a maioria dos inquiridos, 72%, preferiam a permanência no euro, sendo 20% contra e 8% indecisos. Mais tarde, já em 2013, 41,5% dos inquiridos apoiam a denúncia do memorando (posição do PCP e do BE), 41% a renegociação nos termos defendidos pelo PS e apenas 10,8% apoiam a política do governo.

No entanto, esta rejeição da política austeritária precisa de ser ponderada. Ela é uma opinião genérica, que não tem em conta a opção por alternativas concretas, por exemplo as formas de substituição dos financiamentos, se suspensos em consequência de denúncia, ou os cortes alternativos (e suficientes) na despesa, no caso de aceitação, à PS, da prioridade da redução do défice e cumprimento do Pacto orçamental subscrito pelo partido. Também esbarra com opinião oposta em relação a uma eventual saída do euro, só apoiada por uma pequena minoria dos inquiridos, como vimos. Sinal de falta de clareza e de receio das roturas é o grande número de inquiridos, a beirar dois terços, que se manifestaram a favor de entendimentos de tipo bloco central na altura da crise de Julho. Como é que 80% dos inquiridos rejeitam a austeridade e 75% desejam um entendimento entre o governo e o PS é coisa que não cabe na minha aritmética.

Esta contradição ou incerteza do eleitorado liga-se à intenção de voto. Apesar da brutalidade da política troiana, pelos seus mandatários externos e internos, só em Setembro de 2012 é que o PS passou para a frente do PSD nas sondagens e está hoje empatado com a soma dos partidos da coligação. Durante o ano de 2013 foi-se consolidando a maioria da oposição (53% em Dezembro) mas com subida lenta e sem perspectivas de maioria absoluta do PS. Se considerarmos a hipótese de o fim da intervenção da troika ser disfarçado como vitória interna e externa pelo poder europeu, interessado em “mostrar” que a austeridade foi um sucesso e a confirmação de uma teoria afinal profissão de fé ideológica, não é de excluir uma recuperação da direita. Mesmo que a nível de décimas, qualquer pequeno alívio da recessão e do desemprego pode ser usado para manipulação das pessoas, já de si confusas e sem verem no PS e no inseguro Seguro uma verdadeira alternativa (com grande ajuda do próprio, o PS desperdiçou a hipótese António Costa).

As pessoas estão confusas e também sujeitas a uma formatação ideológica nunca antes vista sem ser em épocas fascistas. Se é que os tempos actuais de domínio hegemónico, por enquanto, do neoliberalismo associado à extrema ofensiva do capitalismo não são de facto um novo fascismo. A comunicação social, a universidade, a falta de valores sociais derivada da competição desenfreada e da insegurança no trabalho, o populismo a alimentar a descrença na política, tornam as pessoas abúlicas e abafam as perspectivas de revolta das forças populares.

Quantas pessoas não conhecemos, sérias, vivendo medianamente e agora com dificuldades, com valores de solidariedade, e que não discutem coisas tão marteladas incessantemente como “a culpa foi nossa, que vivemos acima das nossas possibilidades”, “os alemães tiveram razão, não lhes podemos exigir mais”, “economicamente, governar um país é como governar uma casa de família”, “não pagar é imoral”, “se não voltarmos aos mercados, é uma desgraça”, “temos todos de fazer sacrifícios”, “se a banca entra em falência, é todo o país que entra em falência”, “o estado social é insustentável”, etc.?

Tenho para mim que, nesta situação, e face à ambiguidade e à complacência do social-liberalismo do centro-esquerda, a esquerda real, enquanto que combativa no terreno da resistência e do protesto, não está a ser igualmente activa no terreno da luta ideológica. É certo que há muitas questões para as quais não há ainda respostas seguras, como o que respeita a uma eventual saída do euro, mas já se devia estar a fazer um estudo profundo, com ampla participação de sectores interessados e procurando-se convencer os eleitores de que há alternativas que merecem estudo e que não são só slogans de oposição irresponsável.

Da mesma forma, não se deve atenuar a discussão dessas questões por receio de isso ter impacto negativo em termos eleitorais. Seria uma posição de oportunismo eleitoralista, a justificar a acusação frequente de que a esquerda real só se preocupa em se acantonar num reduto defensivo que lhe garanta a sobrevivência como oposição, não a ofensiva como força de governo.

Muita gente da zona menos conservadora do centrão pode ser cativada por uma alternativa consequente, bem explicada, com clareza, com consciência dos preços a pagar e também dos preços maiores de outras alternativas. Mesmo pensando em termos estritamente eleitorais, estou convencido de que essa atracção eleitoral nem levaria a concomitantes perdas, porque os eleitores da esquerda real obviamente não desertariam por isso.

Antes da tentativa desejável – e não vou partir logo do princípio de que é impossível, apesar de muito difícil – de uma plataforma das forças de representação e mobilização das classes populares, incluindo o PS, julgo que é urgente começar por dar maior coesão à esquerda real, com um programa verdadeiramente alternativo da política de austeridade, de destruição do estado social e de desvio para o capital de cada vez maior fracção do rendimento nacional disponível. Um programa verdadeiramente mobilizador, radicado na força do povo, não apenas umas formulações vagas de iniciativas sucessivas de “salvadores da esquerda”. Porque, realisticamente, este urgente reforço da esquerda exige os seus partidos implantados, nas instituições políticas e sociais, na informação popular, na consciência política das pessoas. Tudo o mais é coisa de pequenos círculos efémeros. Além de que, fazendo alarde da sua justificação por vícios dos partidos da esquerda, esses grupos acabam por alimentar involuntariamente o populismo anti-partidos.

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