sábado, 9 de novembro de 2013

Entendam-se!?

Pela enésima vez, enjoativamente, acabei de ouvir o “entendam-se”, desta vez dito por Silva Peneda. Entendam-se em quê?

Uma ampla frente ideológica, de centrão, de rendição ao (neo)ultraliberalismo, pode de facto entender-se. Considera que quanto menos Estado melhor. Consideram que a origem de todos os males é a derrapagem dos défices orçamentais e da dívida, ou a injecção de dinheiro na economia (por exemplo, por “quantitative easing”). Consideram que a preocupação central é o controlo da inflação, mesmo que, em situação de crise e de recessão continuada, isto ameace com a deflação. Consideram que o estímulo ao crescimento depende mais da oferta do que da procura. Consideram que as despesas das prestações sociais (educação, saúde, solidariedade) são coisas de estado gordo. Consideram que a austeridade pode ser expansionista. Consideram, no caso europeu, que o euro é uma construção inatacável e que o paradigma alemão é generalizável a toda a Europa, como se os excedentes de uns não tivessem de ser obrigatoriamente os défices de outros. Etc.

Uma outra frente, de esquerda, considera que há funções do Estado necessárias não só para a justiça social como também para a vitalização da economia. Considera que os défices podem ser um instrumento do crescimento económico. Considera que o estímulo ao crescimento depende essencialmente do nível da procura interna. Considera que a austeridade é asfixiante, que faz acumular dívida sobre dívida, pobreza sobre pobreza, desemprego sobre desemprego, emigração sobre emigração. Considera que a austeridade arrasta consigo a espiral recepcionista, com menor PIB a gerar menor receita fiscal, a aumentar o défice, etc. Considera que o euro foi uma invenção aberrante, contra todas as regras de um espaço monetário óptimo, e que hoje serve o capitalismo avançado europeu, principalmente dos países nórdicos, com rendição a ele da social-democracia, dos sindicatos e das forças populares.

A pedra de toque é a da alternativa à política troikiana. Um pouco menos de austeridade, um pouco mais de crescimento, mas com que financiamento? Ou uma rotura determinada com as imposições troikianas, tendo principalmente em conta que, em relação ao problema da nossa dívida, devemos olhar para o défice primário (sem serviço da dívida) e discutir ao máximo tudo o que sobre ela suportamos?

Há muitos que discordam da solução radical da rotura com a troika, que têm medo dela, que são sensíveis aos argumentos – até propalados por um sector de esquerda, o do BE – de catástrofe inevitável causada por uma saída do euro. Mas, ao que tenho ouvido, concordam com que, ao menos, é uma posição que não sofre da pergunta inevitável e lógica ao PS: onde vão buscar recursos para o crescimento e manutenção do estado social, no quadro da austeridade troikiana, mesmo que um pouco atenuada?

Essas duas perspectivas políticas são minimamente compatíveis, podem permitir o “entendam-se”? O povão, de bons costumes, acha que sim. Infelizmente, desinformado e manipulado, dá suporte eleitoral aos quase 80% da frente troikiana. Queixa-se mas vota neles, pensa que há lugar para compromissos. Para mim, não há meio termo.

Infelizmente, também são muitos os que, à esquerda, gritam “entendam-se”. Entendam-se como?, se o PS está na frente troiana e os outros partidos de esquerda (e movimentos e organizações não partidárias) na frente alternativa? Por exemplo, se tivéssemos hoje um governo de “unidade de esquerda”: a troika exige para 2014 uma meta de défice de 4%, um corte de despesa pública de cerca de 4000 milhões de euros. O PS vai dar um murro na mesa, a dizer que não? Ou vai buscar esse dinheiro a outro lado, não aos ordenados e pensões? Onde? Ou o PCP e o BE, seus eventuais companheiros de governo, vão, suicidariamente, aceitar esse corte dos 4000? Não se desfaz o governo de "unidade" no dia seguinte, e com razão? Amigos da “perspectiva geográfica" PS-PCP-BE, façam lá uma proposta de programa comum. Pago para ver.

Parece-me que há muita gente que ainda não percebeu o que está em jogo e continua a pensar em velhos termos de unidade de esquerda. Como Jesus Cristo à Pessoa, não sabem nada de finanças. Também o fechar de círculo sobre a utopia europeia, entre a direita e sectores da extrema esquerda.

Em próxima entrada, tentarei desmontar – apesar de não ser especialista – a completa falta de bases objectivas, económicas, das propostas que o PS tem apresentado como programa de “troika sim, austeridade sim, mas um pouco menos”. Já basta de embustes. Mas também já basta de pessoas respeitáveis, gente estimável de esquerda, a entrarem neste jogo. Ouvi-los-ei quando me explicarem onde se vão buscar os milhares de milhões de euros necessários em alternativa à denúncia do memorando, à reestruturação da dívida, eventualmente à suspensão do seu serviço e à saída do euro. Até lá, como é o refrão do animador de festas angolanas a que costumamos ir, "estamos a brincar ou quê?".

NOTA – Explicando uma longa hibernação do Politeia, José Manuel Correia Pinto escreve que “tinha decidido não voltar à escrita tão cedo por entender que as palavras estão esgotadas e estar convencido que já não vai ser por via delas, por mais inflamado que seja o seu uso, que a situação portuguesa poderá ter a reviravolta que os portugueses – os portugueses silenciados pelos grandes meios de comunicação social - verdadeiramente desejam e que a todo o momento esperam para nela poderem entusiasticamente participar.” Mas eu sei que esse meu querido amigo não é homem de desistir. Também eu começo a pensar que estou a escrever em circuito fechado, para já convencidos. Temos de encontrar uma porta para outro caminho, mais eficaz.

1 comentário:

  1. Penso também que, inviável a acção através da mobilização eleitoral por um novo partido, outra acção (acções) devem ser consideradas e postas em prática.
    Com urgência.

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