sexta-feira, 5 de julho de 2013

Os puros e os espúrios (I)

Deve-se fazer incidir o principal esforço à esquerda no estabelecimento de uma unidade que viabilize, a curto prazo, um governo de esquerda, uma verdadeira alternativa às políticas das troikas, interna  e externa? É uma proposta hoje muito consensual (?) mas já escrevi que não me parece ser realista. Esta ilusão pode ser frustrante para o eleitorado descontente mas perplexo e pode ser desmobilizadora para os mais empenhados em outras formas de acção política. Vale a pena reflectir nela.

Principalmente a partir do 25 de Novembro, assistiu-se a uma progressão lenta das posições do capital e a erosão dos instrumentos institucionais de luta dos trabalhadores, com políticas de direita – com apoio socialista – que, apesar de lesivas, não punham em causa, isto é, não anulavam irreversivelmente, muitas conquistas populares, nomeadamente os direitos de trabalho e os fundamentos do estado social.

Por isso, a questão da unidade de esquerda colocava-se de forma diferente de hoje. O PCP e depois o BE, bem como a CGTP, faziam um jogo de gato e rato em que os apelos à unidade podiam servir para evidenciar a recusa do PS a esses apelos, desvalorizando-o como partido de esquerda. Afinal, esperava-se que, a prazo, o PS se fosse desgastando. 

Creio que foi um cálculo errado, porque não era só o PS, partido, que recusava essa unidade. Era também uma grande massa de eleitores, os que já vinham do medo de 75, que não era sensível à ideia de um “PS traidor à esquerda”. Eventualmente, até não dariam o seu voto a um PS aliado à esquerda. Com isto, e com a conquista progressiva da informação e do aparelho ideológico pela direita e pela burguesia, PCP e BE, por mais consequentes que fossem, foram empurrados para o enquistamento e vistos como radicais insensatos por muita gente de camadas populares, os mesmos que foram orientados para verem como “natural” o arco de governo do centrão (ou pântano).

Como disse, tudo isto era relativamente secundário, quase um jogo de propaganda, porque não se passou por crises agudas económico-políticas, a exigir a unidade contra uma direita muito avançada na relação de forças. As contradições estavam longe de ter a profundidade das actuais.

O paradoxo é que hoje, quando a unidade é mais necessária, é que ela é mais difícil e, a meu ver, impossível em tempo útil (em termos eleitorais). 

Até agora, como disse, a falta de unidade não teve consequências de rotura grave da situação social e dos direitos dos trabalhadores e reformados, nem agravou o desemprego a dimensões intoleráveis.

Agora, os apelos à unidade que se lêem diariamente ou comícios sem conteúdo fundamentado, como o da iniciativa de Mário Soares, parecem-me não corresponder minimamente aos problemas centrais que defrontamos. Já não se trata de unidade para programas mais ou menos reformistas ou para aproximações de cedência mútua para medidas sectoriais concretas, no mesmo quadro continuado de governação para a mesma gestão convencional do capitalismo, regulado e controlado nos seus excessos por forças de esquerda.

Pelo contrário, como duas placas movediças, estão a deslizar uma sobre a outra duas movimentações sociais e políticas. A resistência a curto prazo à política neoliberal e à ideologia, levadas ao fanatismo, de destruição do estado social levará à resolução da crise e, porventura, à libertação de Portugal da servidão perante os interesses corporizados no sistema europeu “de facto” (quero dizer, não contando com as intenções piedosas dos pais europeus e de todos os eurofílicos fantasistas de hoje). 

Ao mesmo tempo, por debaixo, mais lentamente, outra corrente de lava alimenta-se destas lutas para uma mudança mais de fundo que tem como objecto as fragilidades da democracia formal reveladas pela crise a mais curto prazo: a falência dos partidos, a impreparação dos dirigentes políticos, a corrupção e o tráfico de influências, a apropriação pelos aparelhos de toda a vida política, o abafamento da cidadania, etc. Uma mudança revolucionária (o que não quer dizer obrigatoriamente violenta) do sistema económico será também uma nova democracia com plena cidadania.

Fico-me agora pelo processo a curto ou médio prazo. Não sou economista, estou sempre a recordar aqui, mas ainda vou até onde deve ir hoje qualquer político interessado. Creio que uma das principais características da economia actual, em boa parte devido à crise, é a negação prática da ideia de que a economia é uma ciência pouco vulnerável à sua conquista e formatação pela ideologia. Com extremos, a meio caminho dos quais é difícil estar-se.

Escrevi que não se pode estar meia grávida. Pelo que vou vendo, e passe algum exagero ou simplificação, também me parece que é impossível, teórica ou praticamente, conciliar-se ou ter-se uma posição a meio caminho entre opostos fundamentais como a ideia de que o crescimento é movido pela procura ou é pela oferta; entre a política keynesiana e a monetarista ou ordoliberal, com relação com o neoliberalismo; entre a esperança na austeridade expansionista ou a opinião de que a austeridade leva a espiral recessiva; entre a crítica do euro e o reconhecimento da falta de condições de zona monetária óptima e, por outro lado, a mitificação do euro e do federalismo europeu com rejeição catastrofista da saída do euro; entre o privilégio à perspectiva dos devedores numa reestruturação da dívida e à perspectiva dos credores; etc.

O eleitor comum não sabe escolher entre estas alternativas mas sabe algumas perguntas “de bom senso” que lhe andam a sugerir: o governo tem dinheiro para pagar salários e pensões? Quando acabar o empréstimo da troika, como vamos pagar a dívida? Se os juros forem altos demais, se quisermos pedir algum alívio, não estamos sempre nas mãos da Alemanha e da UE? Se sairmos do euro e desvalorizarmos a moeda, não vamos perder pela subida dos preços e por termos de pagar a dívida em euros? Sair do euro, significando sair da UE, não vai deixar desprotegidos os nossos emigrantes na Europa?

Muitas destas perguntas já vêm com resposta falsa. Outras partem de falsos pressupostos. No entanto, por muito que machucadas pelos opinadores de serviço, parece-me possível discutir alguns aspectos essenciais da economia política de hoje, a dominar a crise actual. É na concordância ou não destes pontos essenciais em debate – como formulei acima e repito – que se afere da viabilidade de um programa comum. O problema seguinte é o da consistência do programa e da forma como essa consistência se traduz numa mensagem simples, clara e mobilizadora do eleitorado.

1. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre o motor do crescimento? É principalmente a procura, por  poder de compra dos consumidores e, logo, alto nível de emprego, ou é a oferta, por incentivos às empresas, muitas vezes perdidos porque a produção não se escoa, principalmente na situação de deflação a que nos arriscamos?

2. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre o balanço relativo e eficácia de políticas a favor da redução de importações ou, por outro lado, do aumento de exportações (tendo em conta, neste caso, as constrições postas pela recessão nos nossos parceiros tradicionais)? Estão de acordo em relação à necessidade ou não de alteração ou diversificação das nossas relações económicas internacionais?

3. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre a ideia que deve ser transmitida, usando a “economia moral” dos adversários, de que os nossos défices são o excedente de outros, que o nosso endividamento é o crédito de outros? Que o diferencial entre o custo dos juros pagos pela nossa banca à banca do centro e dos juros pagos pelo Estado à banca, facultando lucros gigantescos em todas as décadas de 90 e 2000, facilitou a dívida soberana?

4. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre qual o modelo económico (que julgo serem antagónicos) adequado e experimentado historicamente para resolução da crise financeira, espiral recessiva, risco de depressão, desemprego – keynesianismo? monetarismo (também dito, como variantes, ordoliberalismo, neoliberalismo)? 

5. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre a forma, viabilidade e custo de angariar financiamento alternativo ao da troika?

6. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre o peso do estado na economia e sobre o grau de imperiosidade de defender o estado social?

7. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre a probabilidade – e estudar tecnicamente com profundidade e rigor – de a via austeritária que nos está a ser imposta ter consequências mais gravosas do que medidas drásticas de recusa, como a reestruração da dívida, com ou sem saída do euro?

8. PS, PCP e BE têm posições concordantes sobre a viabilidade de uma mudança dos dogmas de política económica da prática totalidade dos países europeus e da burocracia das instituições, com realce para a CE e o BCE? Estão de acordo na crença de uma mudança de atitude europeia, nesta relação de forças, em que o campo de direita absorve mesmo a social-democracia? Acreditam todos no projecto federalista?

Ou há resposta lúcida para tudo isto, no domínio da objectividade política, ou a indignação com a falta de unidade, as manifestações de “entendam-se, porra!” são demagogia, subjectividade e uso de “argumentos morais” por quem é politicamente, e experimentado, tudo menos anjo de moral. Quem se limita a clamar pela unidade, por vezes com a arrogância de que todos são moles ou inconsequentes, tem de mostrar que a falta de unidade é só uma birra e não a incompatibilidade de posições políticas claramente opostas

E nem é um caso à Brest-Litovsk, uma cedência para se conseguir o essencial. Ceder na resistência à política das troikas, interna e externa, é correr o risco de perder não uma batalha mas a guerra.

Os do "entendam-se!" devem também tomar posição política, dá-la a conhecer, criticar as propostas partidárias, em concreto, não se refugiando atrás de uma mera “proclamação moral”. E, como já disse aqui, é curioso que esses apelos veementes até possam vir de pessoas que quebram com espavento ligações partidárias, com declarações agressivas entre companheiros de luta, mesmo que com discordâncias legítimas, ou até por motivos fúteis e ridículos, como a história de quem foi o quarto fundador do BE. Fico por vezes a pensar, lembrando-me de alguma ética dos meus tempos, se não há mais coisas por detrás.

Quanto aos partidos de esquerda, têm o dever perante o povo português de mostrarem transparentemente o que são as suas propostas para solucionar a crise, no âmbito de uma política de esquerda, patriótica e sem submissão aos poderes da nova hegemonia imperialista intra-europeia, com centro em Berlim. Ao mesmo tempo, devem declarar-se sinceramente disponíveis para o debate dessas propostas (também com movimentos e organizações sociais). Debater não obriga a mais .

Depois, das duas uma. Ou há base suficiente para uma candidatura alargada em novas legislativas (digo-o por absurdo) ou não, avaliando-se depois se há condições para graus variáveis de convergência pós-eleitoral. Este caso é provavelmente desmotivador mas ganha em transparência.

Este texto vai longo e fico hoje por aqui. Continuarei com a exposição, porventura desconhecida de muitos, das posições formais dos partidos de esquerda e de alguns dos mais significativos movimentos dos últimos tempos

1 comentário:

  1. Notável, a todos os títulos.
    É um manifesto que subscrevo na sua totalidade.

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