sexta-feira, 28 de março de 2014

Contra a direita, a unidade da esquerda?

Continuo a entrada anterior, mas agora na perspectiva da política portuguesa. Como diz Mariana Avelãsnão é melhor passarmos a coisas práticas e estratégicas? Que fazer? Tenho só uma pequena biblioteca e sei pouco de finanças, mas estamos em tempos de todos darem o que puderem. Senão, daqui a pouco, “serão tempos de peste, em que os loucos vão conduzir os cegos” (se é que ainda não é assim). E como ensino aos meus alunos, vamos tentar discutir cartesianamente, parte a parte, com simplicidade mas com rigor. Ou, como costuma dizer René Lavand ao mostrar os seus truques de cartas, “no se puede hacer más lento”. 

Desde logo, para não enredar a discussão – embora não ache rigoroso – vou falar de uma esquerda, em geral, representada partidariamente pelo PS, PCP (mais PEV), BE e, agora, Livre. Para simplificar, falarei do PS e, como costuma dizer um amigo meu, a “esquerda à esquerda do PS” (EsPS). Também não direi una palavra sobre culpas na desunião. Não adianta chorar pelo leite derramado, embora coisas a mudar rapidamente para sucesso eleitoral próximo tenham ainda muito a ver com memórias ou preconceitos antigos das pessoas (que me interessam muito mais do que os agentes partidários).

Primeira pergunta: para que serve a unidade de esquerda?

A política não é um jogo infantil de sonhadores, mas às vezes até parece. Há respostas ridículas, que traduzem ingenuidade política ou oportunismo. Pretender que se consiga – ainda por cima por acção de um por ora pequeno partido – uma ancoragem do PS à esquerda é imaginar que se desamarra um partido como o PS de todos os compromissos nacionais e internacionais estabelecidos. A fórmula, em si, é inutilmente vaga, se não se disser o que significa essa ancoragem, em concreto, em posições programáticas. Como com todos os partidos, que confiança se pode ter em “ancoragens” que são promessas logo depois negadas? E que importância tem essa ancoragem no quadro dos factores que a direcção do PS põe na balança para as suas decisões políticas, se essa ancoragem não condisser com, por exemplo, as previsões de voto?

Mais ridículo ainda é justificar a união com o risco de o PS preferir governar com a direita. Mas que esquerda é essa que pode admitir entender-se tendo dentro de si a ameaça negocial de uma aliança adversária? Pior ainda, como ameaça sempre Rui Tavares: “não se queixem depois de o PS fazer logo uma revisão constitucional com o PSD”. Sem palavras!

Mas serve para algumas coisas: 1. travar os excessos nefastos da política da direita; 2. repor os esbulhos destes últimos três anos, praticar uma política de emprego e desenvolvimento, mesmo que baseada num consenso mínimo possível (não se admirem, lá irei); 3. dar aos eleitores uma perspectiva de alternativa a uma inevitabilidde de austeridade com que foram “informativamente” massacrados; 4. motivar para a mobilização de intervenientes políticos activos. Admito a importância dos pontos 3 e 4. Os anteriores, discutirei adiante.

Segunda pergunta: a unidade de esquerda é desejada?

Infelizmente, estou convencido de que é desejada muito menos do que se julga, e faço-o como quem tem esta pergunta por muito importante e procura sondar muitas pessoas que conhece. A unidade é desejada por muitos que a vêem no espaço limitado dos seus desejos bem intencionados, como se eles fossem a realidade. Estou convencido de que a maior parte dos eleitores, em particular os do PS, não dão um tostão por essa unidade. Mais, que o que eventualmente o PS ganharia eleitoralmente, vindo da abstenção ou do voto branco, seria largamente perdido, no seu centro ou na sua direita por eleitores que nem querem ouvir falar da esquerda à esquerda do PS. Cinicamente, concordaria com o PS, quando se recusa a fazer alianças à esquerda (a propósito, não se esqueça que foi sempre o PS que se recusou a fazê-las. Dizer o contrário é facciosismo).

Portanto, não são os poucos milhares de apoiastes do Livre ou de manifestos repetitivamente unitários, com nomes soantes a saltarem de um para outro, que têm autoridade prática – sem prejuízo da autoridade moral – para exigir a unidade de esquerda ao PCP e ao BE, geralmente deixando esquecido o PS. Ou então, apresentando propostas recuadíssimas ou vagas, por saberem que de outra forma teriam a recusa liminar do PS.

O que os defensores da unidade mítica devem fazer é contribuir para resolver o problema que enunciei: como fazer os eleitores do PS serem atraídos pela unidade? Não o fazendo, não se devem limitar a falar de unidade para os eleitores do PCP e do BE, que não precisam que se lhes fale disso. Outra coisa é falarem para os aparelhos partidários, que bem precisam, mas, aí, só é mais eficaz a defender a unidade quem a queira, prioritariamente, na área da esquerda consequente. A convergência mais ampla, a exigir compromissos mais difíceis, será coisa bem mais complicada e a precisar de forças de influência muito para além de manifestos de dezenas de pessoas.

Terceira pergunta: a unidade de esquerda é possível?

Creio já ter respondido parcialmente. Não tenho dúvidas de que será extremamente difícil ou só até um ponto sem consequências. Para além de factores mais circunstanciais, como as posições em relação ao combate à crise e em relação à ideologia única neoliberal, há coisas antigas e profundas que também s repercutem na opinião pública e que assim, por eleitoralismo, condicionam os partidos. Não se pense que está esquecida, para uma geração ainda viva e votante, a responsabilidade do PS no que uma boa parte da esquerda viu como traição ao 25 de Abril. Em contrapartida, para outros, o sectarismo e voluntarismo do PCP. Não querendo entrar agora nessa discussão (mas lá irei um dia), essa crispação ainda dificulta a unidade, tanto mais que estimula o espírito partidário, de fortaleza. Não quero dizer que este espírito existe tanto como se diz, mas vale aqui o “no creo en brumas, pero…”

De qualquer forma, como tantas vezes tenho defendido, creio que todo este lastro de vícios ou tiques partidários, juntamente com hábitos pouco exemplares, de carreirismo, oportunismo, promiscuidade com poderes económicos, etc., bem como, por outro lado, a crispação num sistema ideológico rígido, a falta de crítica profunda de transformações tão sísmicas como a implosão do sistema soviético, alguma falta de compreensão – que se veja – das grandes transformações sociais do último meio século; tudo isto só permite a unidade de esquerda no quadro de uma reconversão da própria esquerda. No caso de novos partidos, não mais do mesmo, ao sabor de pessoalismos, mas partidos alternativos, “partidos outros”.

Quarta pergunta: a unidade de esquerda é eficaz?

Admita-se que há resposta positiva para tudo o que se perguntou: a unidade de esquerda tem utilidade, é desejada, é possível. Creio que é admitir muito, por parte de alguém minimamente lúcido e realista. Mas será eficaz?

A pergunta não se deveria pôr se virmos a questão na perspectiva do combate ao inimigo principal, principalmente quanto ele é uma espécie de “inimigo mortal”. Neste caso, não é questão de a unidade poder ser eficaz; é de a unidade ter de ser eficaz, seja como for. Não era questão que se pusesse às resistências antinazis. Lutava-se, matava-se, morria-se também. O que seria absurdo é que estivesse na resistência quem não quisesse matar ou quem não estivesse disposto a morrer.

Passando o exagero da analogia, o nó górdio do problema actual da unidade é a solução da situação económica e financeira. O inimigo principal é este governo e as forças económicas que o suportam, bem como o aparelho político europeu. É preciso vencê-lo e seria bom que juntando forças, unitariamente. É claro que as posições do PCP e do BE são facilmente compatíveis, mau grado ainda formuladas tacticamente com muitos tons nebulosos. Mais ambíguas as do PS, mas sabendo-se, por exemplo, que estão presos ao seu voto favorável ao pacto orçamental e que recusam qualquer corte do montante da dívida.

Se a unidade se traduzir, como é desejável, numa acção comum de governo, seja de que forma institucional for, tem de assentar necessariamente num programa comum. Também é truísmo que esse programa tem de ser consensual e traduzindo compromissos de parte a parte. O problema está em saber-se quando uma cedência significa um compromisso razoável, mutuamente vantajoso, ou quando é um beijo mortal.

No caso actual, há consenso (afirmado) em que a superação da crise requer o crescimento da procura interna, a luta contra o desemprego, o investimento e o equilíbrio da balança externa. Também o equilíbrio das contas públicas, mas não como objectivo à custa daqueles objectivos prioritários. E, como se tem visto, é cada vez maior e significativo o número de pessoas influentes que entendem que esses objectivos exigem necessariamente a reestruturação da dívida, coisa que o PS recusa.

Em conclusão, pode tudo estar certo pergunta a pergunta – e, como tentei demonstrar, eu acho que não – e, mesmo assim, não faria sentido por nada chegar a mais do que um exercício gratuito, sem conteúdo político real. A política não se faz com sonhos ou no reino das fadas.

Quinta pergunta: então, finalmente, em que ficamos?

Recordo o que tenho como certo, coisas "elementares, meu caro Watson": 1. O PS tem mais interesse em aliar-se à direita do que à EePS, tanto pelas suas dependências internacionais como pela inclinação do seu eleitorado. 2. Mesmo assim, é exagerado e sectário considerar que o PS, seguindo sem dúvida uma política de compromisso com as normas ordoliberais europeias, o faria com a mesma brutalidade que o actual governo, porque tem que manter outra imagem junto do seu eleitorado. 3. Vai demorar um tempo longo até que a EePS tenha perspectiva de ascender eleitoralmente ao governo, precisando de muito mais do que os seus actuais 20% e mau grado a sua progressão continuada.

Assim, ninguém em perfeito juízo negará que se deve fazer o maior esforço por uma unidade da esquerda, sensu lato. Que a unidade exige sempre compromissos, senão não haveria razão para a existência de partidos diferentes com posições diferentes. A política é a arte do possível e isto não é obrigatoriamente oportunismo. A política é também a arte suprema de saber distinguir, mas interligando, a estratégia que exige firmeza e coerência e a táctica que exige flexibilidade.

Também parece de elementar bom senso entender que o compromisso não significa cedências estratégicas, que podem levar a descaracterizações mortais para a coerência da EePS, deixando todo o espaço livre para um pântano ideológico e político permeável às ofensivas da direita. Veja-se as consequências dramáticas para a esquerda italiana da crise e morte do PCI. Também é de elementar bom senso considerar-se que nem sempre há apenas a dialéctica entre estratégia e táctica. Há momentos, como agora, em que situações de crise abrem clivagens profundas dentro da esquerda.

Mas vivemos num paradoxo. Voltemos à resistência contra o inimigo comum. Se por vezes na história a unidade foi ofensiva, em geral ela é mais necessária como defesa contra esse inimigo comum. Mas como poderia ter havido resistência unida entre os partisans armados e grupos que preconizassem compromissos e entendimentos com o invasor? Neste momento, parece claro que a linha vermelha é a reestruturação da dívida. Já, por exemplo, a saída do euro, a meu ver, não devia ser impeditiva de um entendimento unitário. 

Julgo que vai ser milagre conseguir a unidade entre os que estão de um lado e outro dessa linha. E o problema é que, ao contrário de muitas questões quantitativas de política, em que se pode negociar ir mais longe ou menos longe, porque tudo é sempre ganho, neste caso, a questão é qualitativa. Não se pode semi-defender a reestruturação. Não se pode estar semi-grávida.

No entanto, mesmo sem se ir a esse aspecto essencial, há áreas possíveis de aproximação ideológica e cultural com efeitos políticos, em que é importante deixar a direita isolada e assim vista pelo eleitorado: os direitos humanos, a protecção das minorias, a solidariedade, as questões transversais societais, etc.

Na prática, esse nó górdio das divergências essenciais – diria que estruturais ou constitutivas – torna impolítica qualquer posição dogmática acerca da unidade. Mas não só daqueles, nomeadamentee os partidos da EePS, que são sempre acusados de sectarismo. Também os defensores da unidade a todo o preço são igualmente científicos e não-racionais politicamente. Muitos serão certamente generosos idealistas, mas não deixam de contribuir para o confucionismo político, para o fatalismo e, até, para o oportunismo messiânico de outros.

O que se pode fazer? Como simples independente de esquerda, não tenho a pretensão de poder influenciar os partidos, mormente o PS, que me olha como simpatizante da EePS (assim como esta desconfiaria de mim se eu fosse independente mas defensor do PS). Mesmo em posição modesta, não deixo de querer contribuir para um debate cada vez mais necessário.

1. A meu ver, o aspecto mais importante desse debate urgente – que também é uma contra-ofensiva ideológica contra o pensamento único – é dar meios aos eleitores efectivos ou potenciais de esquerda para eles poderem ajuizar das questões centrais e das diversas propostas: qual é o problema central que condiciona a solução da crise? Se é a dívida, a reestruturação é condição sine qua non para um programa unitário mínimo? Quais os prós e contras, analisados de um ponto de vista científico e não tecnológico?

2. Parece-me que é vão e inconsistente pretender-se qualquer avanço para uma unidade sem esta primeira fase, de proposição e de diálogo com os eleitores, estar minimamente desenvolvida. Nem seria de bom senso exigir isso a qualquer partido responsável, a menos que se embarque em fantasias de partidos envelopes ou partidos e-bay.

3. No entanto, em qualquer fase deste processo, o PS e a EePS devem já ter manifestado a sua disponibilidade para discussão das suas propostas para um governo alternativo, com base nas propostas fundamentadas que elaboraram, com forte componente de debate público e envolvendo a esquerda não partidária.

4. Era desejável que os partidos, na fase de discussão de formas possíveis de aliança ou de apoio mútuo e da plataforma programática de tal governo, se comprometessem à maior transparência possível desse processo.

5. Nada disto e a honestidade que lhe deve presidir fica prejudicado pelo que defendo como principal: que o processo unitário seja construído em dois andamentos, com dinâmicas, factores e coerências próprias. A discussão entre o PS e a EePS vai ser muito difícil, embora – repito – isto não justifique que desistamos de lutar por ela.  Pelo contrário, a unidade dentro da EePS – incluindo também movimentos, organizações, grupos informais – é mais fácil. Os seus efeitos são politicamente relevantes, mesmo que sem tradução a curto prazo no plano governamental. Fixa eleitorado à esquerda do PS e até simpatizante da ala esquerda do PS. Constrói alternativas abertas, de diálogo, a superar algum receio de pessoas de esquerda de se envolverem com os partidos. Conjuga influências em sectores políticos e sociais diferenciados. E, ligando à outra questão, reforça a capacidade negocial da EePS com o PS.

6. Assim, parece-me que, muito mais eficaz do que a luta inglória e prioritária pela convergência ampla da esquerda – que nunca se diz como se vai promover ou influenciar, seja com pequenos partidos ancoradouro seja com manifestos – seria a concentração prioritária de esforços para a constituição de uma forte frente unitária de forças políticas e sociais, partidária sou outras, mesmo de simples participação de pessoas singulares (para que servem os nossos meios na net?) para um programa comum de propostas e acções, a servir de contraponto às posições do PS num desejável processo negocial mais amplo.

Como me escreveu há dias um amigo a comentar uma entrada, “a primeira coisa que me parece certa é que não vai haver saídas fáceis. Teremos, sempre, sangue, suor e lágrimas… (…) Reconheço que é um caminho estreito e muito difícil, em que se tem que resistir tanto a cedências estratégicas como a hipotecas a uma cultura sectária que criámos.”

Como vamos suportar isso? Lutando, mas sem cair em coisas que acabem afinal é por fazer perder forças. Não será para amanhã, contra o desejo de quem quer a unidade já, seja como for e a qualquer preço. A impaciência não é uma virtude revolucionária.

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