terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Recordando o MDP/CDE (4)

Em 1995, como aqui já recordei, o MDP/CDE admitiu um grupo considerável de dissidentes do PCP, liderados por Miguel Portas, e, por influência deles, transformou-se em aspectos essenciais, sob a forma do novo Política XXI. Muitos membros do MDP, não concordando com essa via, constituíram uma associação política, a Associação MDP (A-MDP). Não teve sucesso, em boa aperte por razões conjunturais, que em parte se repetem hoje. Havia grande pressão à esquerda, nomeadamente entre sem-partido, para uma unidade contra o cavaquismo. Muita gente viu em Guterres a possibilidade de entendimento entre as esquerdas que afinal nunca se concretizou. Mesmo com independentes, o diálogo por parte do PS, nos Estados Gerais, esgotou-se no jantar de agradecimento a seguir às eleições.

O texto que se segue (se bem me lembro, com colaboração de Mário Casquilho sobre um texto base meu) parece-me merecer atenção, ainda hoje, quase a fazer vinte anos. Anote-se que algumas omissões, principalmente as referentes a posições e acções políticas concretas, se justificam pelo carácter não partidário da A-MDP. e da vontade de agregar pessoas de variados sectores de esquerda e progressistas. Assim, por exemplo, o não se falar de uma perspectiva concreta de sociedade economia socialista, embora a postura de “socialistas alternativos” fosse comum à generalidade dos membros da A-MDP. 

Não cabendo agora e aqui definir isso de “socialistas alternativos”, aqueles que se vêem num “partido outro”, como escrevi aqui, defino-os pela negativa (coisa de que não gosto), como fazíamos então: nem marxistas-leninistas nem sociais-democratas.

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OBJECTIVOS DA ASSOCIAÇÃO MDP

A situação da Esquerda e o papel do MDP

A constituição da Associação MDP justifica-se pela nossa consciência de que se mantém, ou até aumentou, a importância dos valores e propostas políticas do MDP, apesar de esgotada a sua forma de partido. A Associação herda um valioso património político, que vai ao encontro das carências que muitas pessoas sentem em relação às concepções e comportamentos da Esquerda.

A Esquerda atravessa uma fase crítica, agravada pelo colapso do mundo comunista, que não afectou só os partidos comunistas e os grupos ou pessoas por eles influenciados. Duas consequências indirectas desse colapso reflectem-se também noutros sectores de Esquerda e acentuam a sua descaracterização: a dúvida, ou mesmo a descrença, sobre o papel condutor da ideologia na acção política, e a aparente inevitabilidade de uma economia de mercado.

Há uma tendência para a aceitação acrítica do “fim das ideologias”, com riscos de um centrismo pantanoso em que as propostas partidárias só diferem no estilo ou no superficial. Pactuando com este centrismo, a maioria dos sectores tradicionais de Esquerda estão a aceitar na prática a ocupação da vida política por uma “classe” tecno-burocrática desprovida de valores e de sensibilidade social e não combatem radicalmente o alastramento que se verifica do egoísmo, da falta de solidariedade e do défice democrático. Esta homogenização dos grupos políticos leva à impressão de que os poderes se instalam sucessivamente, sem grandes diferenças, reproduzindo os seus vícios e clientelas, e só mudando porque cada um apodrece ao fim do seu ciclo de poder.

A inevitabilidade do mercado leva à sua sobrevalorização e largos sectores da Esquerda de hoje dificilmente se podem considerar como anti-capitalistas, limitando-se à oposição ao chamado “capitalismo selvagem”. As políticas ultra-liberais da década passada (Reagan, Thatcher e companhia) deram à Esquerda uma espécie de alibi, porque a oposição ao ultra-liberalismo a desmarcava dessa direita radical. Quando, depois, a própria Direita recuou nessa via, a crítica de Esquerda perdeu consistência como elemento de diferenciação. O respeito pelo mercado e pela iniciativa privada aparece como uma fórmula que se esgota em si mesma, desligada de uma outra visão do mercado como instrumento regulável de desenvolvimento e de satisfação dos objectivos de toda a sociedade.

Em Portugal, estas características de desideologização e de ambiguidade programática têm sido manifestas no PS. Por outro lado, reconhecendo-se no PCP a coerência e a combatividade, o seu enquistamento ideológico, com consequente incapacidade de tirar as lições da falência do seu modelo, retiram-lhe influência e diminuem o seu papel num esforço conjunto de renovação da Esquerda. Os pequenos partidos, esses cada vez mais se remetem a uma visão de pequeno grupo, numa lógica de exclusiva sobrevivência.

O MDP transportou para a vida partidária uma “pureza” original, intimamente ligada às suas características fundadoras, de movimento antifascista. Valorizar essas características não é uma atitude passadista, fechado que está o período da luta antifascista. É uma questão de actualidade, porque, como exposto atrás, a vida política está carente dos valores que são marcantes do MDP: coerência e firmeza de ideais, visão plural e dialogante, capacidade de inovação e de autotransformação, isenção pessoal, integridade política, rejeição do oportunismo e carreirismo.

Comprovando o reconhecimento desta “personalidade” própria do MDP e da sua importância, temos o testemunho de todos aqueles que, a cada vez que se falava na extinção do MDP, nos diziam como lamentavam o que seria a perda de um património histórico e a falta de uma presença única na política portuguesa. Estes são os já convencidos pela imagem e mensagem do MDP, mas não esgotam o campo dos nossos potenciais colaboradores. A situação da Esquerda, com os seus bloqueamentos e ambiguidades, tem conduzido muitas pessoas a uma atitude de cepticismo e alheamento da política. A presença na vida política, mesmo que de forma não partidária (ou melhor, até, de forma não partidária) de uma corrente com as características do MDP marca uma diferença que pode contribuir para inverter, em muitos desses descontentes, a tendência para o cepticismo.

Os eixos de acção

O objectivo central que herdamos do MDP é a defesa do conjunto de ideias que designamos como “alternativas” e que, por simplicidade, tem sido frequentemente definido pela negativa, isto é, como a alteração radical dos esquemas fechados de pensamento, dos vícios e modos de funcionamento dos partidos tradicionais.

Na prática, esta “alternatividade”, procurada por novos partidos europeus, não é muito mais do que o conjunto de ideias e práticas já muito antes características do MDP:
  • no plano das ideias: a abertura aos problemas colocados pelas mutações sociais desta última metade de século, o questionamento do sistema, atenção aos grandes problemas transversais (a paz, o ambiente, a fome em grande parte do mundo, etc), a defesa dos valores comunitários, o conceito de desenvolvimento sustentado e a recusa do crescimento económico “sem maneiras”;
  • no plano da acção: a coerência entre as ideias e a acção, a actuação local, a participação não instrumentalizadora nos movimentos sociais, a descentralização partidária, a recusa do carreirismo.

A defesa deste perfil de “alternatividade” e a intervenção política tradicional do MDP interlaçam-se, portanto. As novas ideias políticas e a exploração de novos caminhos no questionamento ideológico permanente estão ligados a uma postura típica do MDP, pelo que convergem em objectivo final os que devem ser os dois eixos de acção da Associação:
  • na perspectiva “alternativa”, a proposta de um novo quadro de pensamento de Esquerda que desbloqueie a sua incapacidade para dar resposta aos problemas sociais que aceleradamente se têm acumulado e de que muitas vezes só se apercebem os aspectos aparentes - o egoismo e a competição agressiva, a exclusão social, a insegurança, a droga, a falta de perspectivas de futuro, a massificação.
  • na perspectiva tradicional, o exemplo de um comportamento político isento, dialogante, ideologicamente coerente.

Os condicionalismos

Saímos de uma situação em que a insuficiência dos meios de actuação do MDP impediu a actuação partidária condigna. Ao definirmos, como acima, as linhas de acção da Associação MDP, não estaremos a ser voluntaristas e a exagerar a nossa capacidade? A perspectiva mais realista para definição dos objectivos da Associação MDP é a de encontrar os “objectivos naturais”, isto é, os que decorrem mais directamente da nossa realidade interna e externa. Pensamos que a linha apontada corresponde a esses objectivos naturais, que vai ao encontro da nossa vocação e que é portanto a que resulta na maior economia de meios.

Repetindo em parte o que atrás ficou dito, as características condicionantes (para bem e para mal) do “colectivo MDP”, que a Associação MDP terá como legado, são:
  • sedimentação de um corpo de ideias e valores relativamente difuso mas suficientemente forte para que, mesmo em situações de isolamento, se sinta grande identidade entre os membros do MDP e que cada um se reconheça nas intervenções individuais dos outros;
  • grande ligação ao património político do MDP e seus símbolos, identificados com a luta antifascista e por uma democracia ampla, socialmente justa;
  • número grande de pessoas que, mesmo sem ligação orgânica, se sentem do MDP;
  • experiência e vocação para a intervenção cívica e social a vários níveis, com destaque para o local;
  • espírito unitário, não sectário, e boa capacidade de diálogo.
  • gosto pela reflexão e discussão política, no concreto;
  • relações afectivas fortes, com grande espírito de solidariedade;
  • idade média alta e limitações à actividade política intensa;
  • dispersão geográfica, com fracas ligações regulares entre os seus membros;

Para que a actuação da Associação vá ao encontro do sentimento dos seus membros e os mobilize, estas características internas parecem impor uma actuação da Associação MDP dirigida principalmente para a “política concreta”, mas principalmente a nível do debate político, como forma de aprofundamento da compreensão da vida política e guia de intervenção, e da promoção de discussão e aproximação entre organizações, grupos ou indivíduos de Esquerda.

No plano externo, devemos ter em conta:
  • insatisfação generalizada com o funcionamento do sistema partidário e da democracia institucional;
  • recuo da importância da ideologia, com atitude mais pragmática e abordagem pontual dos problemas, com dificuldade de sistematização:
  • sentimento de “aprisionamento” pelo PS, que, não correspondendo ao posicionamento mais consequentemente de Esquerda de muitas pessoas, as obriga, no entanto, ao voto útil;
  • a existência de um grande número de pessoas de Esquerda que não se revêem no PS nem no PCP; mas tendo presente que, a partir dos Estados Gerais, alguns desses potenciais simpatizantes e colaboradores da Associação MDP podem ver novas condições para uma intervenção independente junto do PS que não necessita de uma intermediação por uma associação;
  • forte desejo, entre os independentes, de entendimento e aproximação entre os dois maiores partidos de Esquerda e entre as centrais sindicais.
  • a imagem do MDP, até agora, como partido simpático, de gente séria e coerente, mas pouco actuante e com meios reduzidos;
  • mas também o desconhecimento de muitas propostas, ideias e intervenções do ex-MDP, nos últimos anos, o que, juntamente com os anos de identificação, na imagem pública, com o PCP, causa dificuldade de apreensão da identidade política e propositiva do MDP e, por extensão, da Associação MDP;

Estes condicionalismos respeitantes ao meio a que pretendemos dirigir-nos implicam, da nossa parte:
  • uma clara demarcação de diferença política, de valores, coerência de princípios e firmeza de convicções;
  • independência em relação aos dois maiores partidos de Esquerda;
  • uma atitude crítica positiva mas não hostil em relação aos partidos, com valorização daquilo em que forem indo ao encontro das críticas generalizadas ao funcionamento partidário.

A estratégia de actuação

Idealmente, a defesa da alternatividade, tal como acima a caracterizámos, faz-se pela sua prática, tanto nos movimentos sociais como pela actuação de novos partidos alternativos. É um terreno político novo, com uma composição social diferente daquela em que o MDP sempre se moveu e em que tem influência. Os novos alternativos têm muito frequentemente uma atitude radical de subvalorização do terreno político tradicional (terreno aqui entendido principalmente como as pessoas), considerando-o como não influenciável, ultrapassado e irrecuperável.

Pelo contrário, por todas os condicionalismos expostos, a Associação MDP só tem condições mínimas de actuação no terreno tradicional. Por reduzidas que alguns julguem ser as possibilidades de semear neste terreno as ideias de “alternatividade”, deve ser esta a principal linha de acção da Associação: procurar e transmitir novas ideias, mas numa linguagem e com um estilo adequados aos nossos interlocutores e mantendo a imagem que nos tem caracterizado.

Tendo presente todo este quadro e conjugando-o com a caracterização que fizémos da situação actual da Esquerda, devemos escolher temas de reflexão, discussão e intervenção que, simultaneamente:
  • permitam a afirmação de ideias e valores de “alternatividade”;
  • sendo problemas em aberto, correspondam às preocupações e incertezas de muitas pessoas e as atraiam para o debate;
  • resultem em propostas que demonstrem que é possível ter hoje uma posição de Esquerda consequente e qualitativamente diferente.

De entre esses temas, podemos exemplificar:
  • a crise das instituições da democracia formal e as formas práticas da democracia participada;
  • o papel do Estado e da sua política económica na estratégia do desenvolvimento e da justiça social;
  • a união europeia e os seus actuais vícios, a correcção das limitações derivadas da UEM;
  • a sociedade a duas velocidades: a terciarização e enriquecimento de alguns sectores, com aumento das exclusões, nomeadamente de jovens, desempregados, trabalhadores não qualificados e reformados;
  • a crise das cidades: a massificação urbana, o défice de qualidade de vida, o problema dos lazeres, as relações comunitárias;
  • o racismo e a xenofobia, o “Estado fortaleza”, a integração dos emigrantes; e, à escala internacional, as relações Norte-Sul e a Nova Ordem Mundial;
  • a crise da segurança social, do sistema público de saúde e, em geral, do Estado-providência;
  • os novos desafios à educação e formação profissional: polivalência e flexibilidade, mudanças tecnológicas rápidas e dos perfis profissionais, mobilidade de emprego;
  • a insegurança, a marginalidade e a droga;
  • a asfixia do sector primário: a necessidade de novos padrões da vida rural.
  • as questões da defesa, incluindo o tipo e missão das forças armadas e o serviço militar.

As iniciativas

Contrariamente ao que acontecia com a situação de partido, não se espera de uma associação a intervenção política no dia a dia. As tomadas de posição devem concentrar-se em questões de interesse nacional (sem prejuizo das tomadas de posição dos núcleos locais, no seu âmbito de intervenção) e devem ser tomadas com isenção, sem as peias naturais nos partidos políticos, isto é, devem ser livres de condicionalismos de conjuntura, tácticos ou eleitorais (por exemplo, à luz da polarização governo-oposição). Esta é também uma vantagem considerável da passagem de partido a associação, e vai ao encontro do espírito de rigor do colectivo MDP.

A lista de temas de intervenção, como exemplificada acima, é grande e forçosamente muito mais vasta que a nossa capacidade para os abordar. As escolhas concretas dependerão dos meios, oportunidades de colaboração e, sempre que possível, ligação a problemas concretos do momento e impacto mediático. A forma prática de abordagem é variável, a decidir em cada caso: debates privados ou públicos, comunicados de imprensa, textos a entregar a entidades ou organizações, petições, etc.

A perspectiva de revitalização interna e consolidação é prioritária, como condição necessária para o sucesso político da Associação. Como referido, são muito relevantes os componentes afectivos no “colectivo MDP”. Por isto, e para consolidação interna, as iniciativas devem incluir, sempre que possível, um carácter convivial. Por outro lado, será necessário contemplar a diversidade de interesses e experiências dos membros da Associação, diversificando o tipo de iniciativas e evitando sempre o risco de uma intervenção centralizada e “de cúpula” que esvazie os núcleos locais e dispersos. Esta preocupação de descentralização conferirá também uma perspectiva diversificada e local a todas as tomadas de posição da associação sobre problemas nacionais.

As iniciativas não podem deixar de ser modestas nos meios, com necessidade de se obter a colaboração de pessoas estranhas à Associação. As limitações práticas e economia de meios obrigam também a dar a maior importância à nossa participação e afirmação em iniciativas da responsabilidade de outras organizações.

1995.07.08

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