sexta-feira, 10 de maio de 2013

Cinema político

Estão em écrã dois filmes políticos, “O capital”, de Costa-Gravas e “Não”, de Pablo Larraín. Têm objetivos políticos, senão não eram filmes políticos… É só nesta base que vou compará-los. Há logo uma diferença de contexto e de referências históricas. “O capital” tem um argumento totalmente ficcional e procura chamar a atenção para mecanismos gerais do capitalismo financeiro atual. “Não” é semi-ficcionado (e muito bem, senão seria apenas um documentário), é claramente situado no tempo e no espaço – o referendo chileno de 1988 que terminou com a ditadura de Pinochet. No entanto, desde logo o início, a total improbabilidade da vitória do não e a utilização simplesmente tática do referendo pela aliança democrática, assim como a largura desse “arco-íris”, colocam questões essenciais, porventura muito mais subtis e exigentes do que as bandeiras de “O capital”.

“O capital” é a história da ascenção, queda e reascensão de um banqueiro “moderno”, que rejeita o que ainda poderiam ser alguns resquícios de velho estilo de homem da finança, e que entra no jogo da especulação, da chantagem, da ligação a tubarões anónimos do mundo dos “hedge funds”. Marc Tourneuil é um homem sem escrúpulos, que defende e procura um ciclo vicioso de dinheiro, respeitabilidade e poder, coisas que diz que vão sempre juntas e que tudo corrompem mas que tudo dão, até sexo.

Quase todas as personagens do filme, umas mais do que outras, se inserem sem forte crítica neste mundo, mesmo que dele não tirem qualquer proveito. Simplesmente, acreditam que “assim se fazem as cousas”. Onde é que se está a ver isto?! Fora a bancária empenhada que escreve sobre a fraude do banco japonês, ressalta a figura, mas de breve aparição, do tio militante de esquerda desde a juventude, e o que ele diz a Marc, mais ou menos isto: “Vocês banqueiros, ganham três vezes. Despedem trabalhadores dos vossos bancos. Exploram e levam à insolvência os devedores a quem enganaram com as promessas de crédito fácil e abundante. Roubam os contribuintes que pagam ao governo para vos resgatar e capitalizar. E o pior é que os primeiros, os segundos e os terceiros são as mesmas vítimas”.

Em geral, a mensagem é forte, mas um pouco linear e talvez um pouco ridícula para quem nunca soube ou já nem se lembra do que foram os anos finais de 60, muito mais os anos de ditaduras. Muitos que, felizmente, já não tiveram de resistir, ainda não perceberam que vão ter de resistir, a começar por se convencerem de que lhes estão a fazer uma das mais inconcebíveis manipulações (há muitos conceitos possíveis de tortura…). 

A nova ditadura em que vivemos (e Costa-Gravas afirma numa entrevista que, para ele, essa ditadura é a banca) não só nos explora como nos convence, com a sua “economia moral”, de que merecemos ser explorados, de que cometemos (nós, quem?) o nefando pecado de vivermos acima das posses, de que a democracia já não interessa nada porque, seja qual for o governo e os seus tecnocratas, as receitas orwellianas são obrigatoriamente as mesmas. O resultado inevitável é a passividade.

No entanto, repito, a mensagem é transmitida com algum simplismo. Por exemplo, a cena quase final de alegoria de uma aclamação, em que Marc é aplaudido pela sua máxima “sou um novo Robin dos bosques, mas vou roubar aos pobres para dar aos ricos” não é nada motivante, cai como coisa de passado. Também não me parece de forma alguma acertado o final em que, perguntando ao público porque é que os banqueiros jogam esse jogo perverso, Marc responde que são umas crianças grandes que precisam de se divertir.

Passemos ao “Não”. Não é um filme de ficção, mas também não um documentário, embora sempre nos fazendo pensar que estamos a conviver com um país e um ano concretos. Esta ideia de documento testemunhal até é reforçado por coisas como reflexos de luz e imperfeições de imagem em filmagens de exterior, como se estivéssemos em presença de uma reportagem. 

O filme não me parece importar-se com deixar uma mensagem globalizante ou uma visão do capitalismo atual, mesmo que o caso chileno seja muito instrutivo, como primeira experiência mundial da aplicação prática das receitas neoliberais dos rapazes de Chicago e do seu guru Milton Friedmann, com Kissinger por detrás. 

Em contrapartida, vão-se colocando, ao longo do filme, questões muito interessantes e hoje muito pertinentes (já há 25 anos), que o relativo esquematismo panfletário de “O capital” omite. Desde logo, a origem do referendo. A aliança antiditadura faz valer a importância da luta popular mas reconhece que foi determinante a pressão internacional, embora essa pressão só se tenha feito sentir com força nos anos seguintes, no resto da América latina, na península Ibérica, na África do Sul, etc. 

Em determinada altura do filme, ainda ao princípio, parece que esse papel internacional é a única esperança, não se acreditando que, por si só, a ditadura se suicidasse. E até nem se acreditando, embora sem se falar muito disso, que o “arco-íris” (a aliança antiditadura, desde o PCC – de que não se pode pronunciar o nome – aos socialistas, a outros partidos de esquerda e até a Democracia Cristã, que tinha sido a grande oposição a Allende) tivesse forças para vencer.

Ao começarem a programar a campanha, os dirigentes do “arco-íris”, confrontados com questões técnicas que lhes são postas pelos seus especialistas de comunicação, têm de refletir sobre coisas impensadas da sociedade chilena. Desde o golpe de Pinochet, 15 anos antes, o discurso político de oposição centrava-se na memória dos crimes da ditadura, mortes, tortura, desaparecimentos. Há dirigentes que dizem no filme que uma campanha que não faça disso o essencial é branqueamento, é uma traição. 

Entretanto, à custa da miséria da camada mais baixa do povo, cresceu uma pequena burguesia para quem Pinochet era benfeitor. Como falar para pessoas tão díspares? Como falar para os velhos reformados com situação de pobreza mas com receio da memória do golpe e do que se lhe sucedeu; e para todos os demais da tal pequena burguesia que se sentia em melhor situação? E, ao mesmo tempo, para os jovens desenraizados, preocupados acima de tudo com o desemprego juvenil e para quem a recordação do que os pais viveram era mortificadora e uma espécie de vergonha coletiva? Como ter uma mensagem coerente, nova e unificadora capaz de chegar a grupos que, numa sociedade violentamente dividida, tinham perdido o sentido nacional da identificação e da solidariedade?

Claro que houve mensagens parcelares, mas a centragem chave foi na rejeição da tristeza, do “mal de viver” imposto por um regime pardacento. Sim à alegria! Pode isto parecer romântico ou utópico? Resultou, foi como um “yes, we can!” lá ao norte, muito depois. Paralelamente, a afirmação da dignidade e do orgulho da cidadania. Não se esqueça que isto se ligou, num e noutro sentido, com uma enorme mobilização popular, quase espontânea e muito corajosa (o filme mostra bem o que foi a repressão durante a campanha), mobilização necessária porque, em ditadura, os partidos do “arco-íris” estavam muito limitados e os seus aparelhos seriam insuficientes para a vitória do Não.

Ainda um outro ponto, que creio que, tendo sido posto em prática em diversas partes, suscita grandes dúvidas: a “moderação”, ou o “realismo”, ou a “reconciliação” (vide África do Sul). Como disse, o “arco-íris” incluía tanto a esquerda como a Democracia Cristã, que tinha aberto caminho ao golpe de Pinochet. A esquerda foi tão longe que, realisticamente, até escolheu o presidente do partido democrata-cristão, Patricio Aylwin, como seu representante e indicou-o como candidato presidencial. Como se vê no filme, em cena real, engoliu o sapo de se ver Aylwin receber a faixa presidencial das mãos de Pinochet, como se fosse a transmissão de poder entre dois presidentes democratas.

Terá tudo isto alguma coisa a ver com Portugal, hoje? Há em tudo isto alguma coisa que mereça a nossa reflexão em termos da mudança de poder? Alguma coisa que nos obrigue a nova mensagem e nova linguagem. Alguma coisa que nos mostre que a “tristeza de vida”, o sofrimento, a doença da democracia e da cidadania em que nos afundam todas as troikas, internas e externas, serão uma fatalidade se não encontrarmos alternativas à atual situação partidária.

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