A recente proposta de redução das propinas do ensino superior (melhor, educação superior) suscita uma discussão teórica, mas também prática.
A discussão teórica tem a ver com o financiamento de “serviços universais”, que, evidentemente, compete ao Estado. A educação básica, a saúde, a segurança social, são casos de situações e valores de utilidade social geral. Interessa a toda a sociedade ter cidadãos instruídos e capazes de trabalhar em proveito geral, de ter cidadãos saudáveis e ativos na produção e na atividade social.
Mas se o Estado financia igualmente estes serviços, não está a beneficiar quem mais pode e menos deveria pesar no encargo geral da sociedade? Claro que sim, se não compensar isto de outra forma. e a outra forma, muito mais simples e eficaz, é a fiscalidade progressiva. No caso, teoricamente, as propinas gratuitas aliviam muito mais o orçamento familiar das camadas pobres do que o dos ricos. Mas tudo bem se estes contribuirem muito mais para o orçamento das instituições de educação superior, por via dos impostos.
Outro fator é o do balanço entre o proveito social e o proveito individual da fruição de um bem público teoricamente universal mas, na prática, mais ou menos particular. É verdade que um diplomado pelo ensino superior tem mais proveito do que um não diplomado, em termos de menor desemprego, maior rapidez de entrada no mercado de trabalho, melhor situação salarial (em sentido lato)? É, indiscutivelmente. Mas até que ponto isto é atenuado pela universalidade do acesso à educação superior? É questão a analisar cientificamente, com dados objetivos, não é mera questão ideológica.
Em bastantes anos atrás, como se vê na secção de artigos sobre política da educação superior no meu sítio, advoguei o valor pragmaticamente definido de propinas, não o de propina zero. Hoje continuo a fazê-lo mas, pelas mesmas razões conjunturais de hoje, defendo a gratuidade das propinas mas não esquecendo os aspetos práticos que discuto a seguir.
A questão é indissociável do financiamento das instituições públicas de educação superior (IES), universidades e politécnicos. neste momento, a regra é a de o orçamento de estado praticamente só cobrir as despesas de pessoal permanente. O funcionamento das instituições provém de muitas fontes – “overheads” de projetos de investigação, prestação de serviços, contratos, etc. –· mas, em grande parte, das propinas. A discussão da abolição das propinas só faz sentido se o Estado garantir a compensação dessa receita essencial das IES.
Primeira questão. Há vários níveis de educação superior. Logo a nível de graus, licenciatura, mestrado, doutoramento. A que nível vão ser abolidas as propinas? pelo que li de declarações oficiais, a nível de primeiro ciclo, o da licenciatura. Entra aqui a questão do processo de Bolonha, de que fui adepto mas que hoje devo revisitar (fá-lo-ei aqui em breve).
Antes de Bolonha, tínhamos “doutores”, licenciados com 4-5 anos de estudos, que o mercado valorizava como quadros superiores. Depois, passámos a ter licenciados de 3 anos com passagem a mestre por mais dois anos de estudos (o esquema 3+2, à inglesa). A declaração de Bolonha dizia que este novo esquema presumia a empregabilidade dos diplomados com um 1º grau, de 3 anos. Ainda não vi estudos credíveis sobre isto, na Europa.
Nos EUA sim, em relação aos cursos de 2 anos dos “community colleges”, que lançam nom mercado de trabalho ou na continuação para um “bachelor” na universidade. Simplesmente, a situação não é comparável, porque os cursos dos “colleges” facultam empregos de baixo nível, de funcionários ou técnicos de base. E em Portugal? Creio que reina a confusão, que ninguém sabe como o mercado de trabalho responde ao sistema de graus. Mas que é certo que as caixas de supermercado estão cheias de licenciados.
As antigas licenciaturas, respeitadas e com grande peso no mercado de trabalho, parecem corresponder hoje mais a mestrados, até pela duração (5 anos). Quando se fala em propinas, à volta dos 1000 euros, fala-se em licenciaturas, com valor fixado a nível geral. As dos mestrados são livres, ao critério de cada IES. Parece que a abolição de propinas se refere apenas ao primeiro grau, de licenciatura, não mexendo nas propinas de mestrado,. Ora, como disse, é o mestrado o grau mais significativo no processo de Bolonha, mau grado as intenções iniciais, e, em Portugal, é o grau de sequência de estudos por cerca de 60% dos licenciados. Abolir as propinas de licenciatura sem mexer nas de mestrado significa pouco.
Depois, há o caso especial dos mestrados integrados. Os cursos de tradicional longa duração, como medicina, veterinária, engenharias, arquitetura, necessários para acesso a essas profissões, conferem um grau de mestrado, não de licenciatura. A abolição das propinas das licenciaturas vai abrangê-los?
E pode haver efeitos perversos. mesmo que se admita – e é verdade – que o custo das propinas não é muito relevante comparado com os de alojamento, material escolar, deslocações, admitamos que a sua redução ou abolição pode provocar o desejável aumento da procura da educação superior. Simplesmente, contra esta procura, continuamos a ter uma oferta muito limitada, traduzida pelos numeri clausus. Maior procura vai significar maior número de rejeitados pelo sistema. para onde vão? Os que podem para o privado. É isto justiça social?
Última nota, prática, sem possibilidades de grande desenvolvimento. Que tipo de educação superior privilegiar, numa primeira fase, em termos de abolição das propinas? A meu ver, pelo que disse, não a licenciatura, antes a dos cursos de dois anos de técnico superior profissional (CTeSP), o equivalente aos cursos dos “community colleges” de que falámos. Cursos que deviam ser a prioridade de investimento dos institutos politécnicos, se não tivessem a atitude narcísica de emulação das universidades, a chamada deriva académica do politécnico.
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