segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Democracia ou ditadura – dualidade absoluta?

Há situações complicadas na história viva que vivemos que são pedra de toque para definição da atitude de quem a analisa e eventualmente toma partido, antes ou depois dessa análise. Digo também antes porque é legítima a tomada de posição afetiva, solidária, ideológica, ainda que só a análise racional a filtre e lhe dá consistência.
Hoje, isto é particularmente importante quanto todo o contexto é conformado para nos condicionar essa análise, sacudindo-a no triturador do consenso político, dos maniqueísmos aceites acriticamente, da hegemonia orwelliana da comunicação social e da sua opinião “plural”.
A situação atual da Venezuela é um caso paradigmático. De um lado, muito minoritário no panorama comunicacional-ideológico, a simpatia acrítica por um processo visto como mais uma ataque possível ao mal absoluto, o imperialismo ianque. Do outro, dominador até mais, uma ditadura personalista, populista, cada vez mais sem fundamentos económicos, arrastando o povo para a miséria, atentatória dos direitos humanos, repressiva, desrespeitadora da democracia.
Isto perante uma oposição majoritária por voto livre, respeitadora da legalidade, dedicada aos interesses das grandes massas populacionais. Na versão mais moderada, de acordo com a tradição necrofílica, tudo aceitarem com Chávez, mas nunca com a atual política de Maduro.
Neste quadro complicado, e que muito desafia a capacidade de processar dinamicamente o devir histórico, para não dizer mais claramente a análise dialética, é confortável para muita autodesignada esquerda colocar-se em posição de eqüidistância, de nim. Há muitos momentos da história, com barricadas erguidas, em que só se pode estar num lado ou no outro. Para os que tentam ficar no passeio a olhar ou a manter-se fariseus, vem o carro da câmara, que os varre para o lixo da história.
Claro que bem posso pensar que a revolução bolivariana não é a rotura anticapitalista e socialista que desejo, embora seja um passo importante nesse caminho, como todo o processo emancipador que teve lugar nas duas últimas décadas na América latina e depois derrotado no Brasil e na Argentina. Que muitas coisas nessa derrota derivaram de erros da corrente progressista, não só da intervenção mais ou menos camuflada do imperialismo. Que uma revolução se devia fazer, na Venezuela, usando os imensos recursos para uma reconversão revolucionária e social dos meios de produção, não pela distribuição contingente dos rendimentos desses recursos. Que uma revolução sem orientação ideológica coerente e forte é frágil. Enfim, que Maduro está longe da qualidade política e carismática de Chávez, assim como Dilma era pálida imagem de Lula.
Mas nada disto pode justificar o “sim mas”. Apenas o “mas” dito depois, e em complemento, de um categórico “sim”.
Como escreve hoje em “público.es" Emir Sader (um pêtista brasileiro revolucionariamente muito recuado), “estar a favor del gobierno de Venezuela no es solo una cuestión política, pero también de carácter. Es vergonzoso cómo gente que pretende estar en el campo de la izquierda, instituciones con tradición de izquierda, partidos que en principio pertenecen al campo popular, quedan silenciosos o se valen de críticas al gobierno para justificar la falta de solidaridad con el gobierno de Venezuela.”
Numa nota curta no Facebook, de “sound bite”, escrevi, para muitos protestos, que para se pensar na Venezuela, era preciso parafrasear a célebre frase da campanha presidencial de Clinton: ”It’s the revolution, stupid!”.
Quis dizer, muito elementarmente, que não se podem analisar situações históricas e sociais dinâmicas como espartilhadas em regras e categorias estáticas, como seja, neste caso, democracia e ditadura. Estão interligadas, como no velho princípio físico da ação e reação. Continuando como provocador, “it’s the dialectics, stupid!”.
No fim do século XIX (Marx e os ativistas alemães sociais-democratas) a perspetiva transformadora era revolucionária. Progressivamente, as concessões capitalistas face à crescente força proletária, os avanços tecnológicos e seus efeitos no trabalho e na sociedade, o receio da atração pela revolução russa, a economia pós-guerra, a mundialização do conhecimento do modo de vida rico ou mesmo pequeno-burguês, criaram no ocidente europeu uma perspetiva de progresso social reformista, com identificação com o sistema político da democracia representativa de raiz burguesa. É inegável que é impossível hoje projetar um modelo revolucionário que esqueça essencialmente este condicionalismo e esta influência social-democrata, que os seus herdeiros no entanto se encarregaram de destruir. O grande desafio de hoje é a síntese entre revolução e democracia, com resultado numa democracia mais avançada.
A América latina é radicalmente diferente. Foi construida num sistema ainda mais extremado do que na Europa de relações precapitalistas, em que a divisão de classes coincidiu com uma correlação estreita com relações colonialistas, de negros no Brasil, de índios na América espanhola. À mentalidade senhoril, depois burguesa, na Europa, somou-se, imbricadamente, uma ideologia esclavagista e racista.
A América latina é hoje muito diferente da Europa. É muito mais estratificada socialmente, com muito menor osmose, mantém um grande elitismo oligárquico, assenta ainda muito em modos de produção arcaicos que exigem uma mão de obra marginal e desprezada até mentalmente. 
Determinante é também um papel especial da pequena e média burguesia, com uma gratificação inexistente na Europa, a de ter abaixo de si uma enorme maioria de então escravos ou submetidos que, nos tempos modernos, é vista como “os pobres”. A classe média, desejosa de assimilação pela elite antes colonizadora (veja-se o paradigma da “gata borralheira” de classe pequena-média das telenovelas) odeia estes pobres da mesma forma que a classe branca pobre do sul dos EUA odeia os negros.
Como no golpe brasileiro, como na feroz e desonesta campanha de desinformação nas eleições que derrotaram o progressismo argentino, a situação venezuelana não é enquadrável nos arquétipos europeus, de conceitos e regras da democracia. De um lado e outro, não se respeitam as regras do nosso óculo, e não têm de ser respeitadas. Nisto, até concordo com a oposição venezuelana, responsável por tantas ações antidemocráticas quanto Maduro. Houve um processo histórico, o chavismo, que lesou os interesses oligárquicos. Reagiram contrarrevolucionariamente com “legitimidade histórica” (defesa de classe). O chavismo/bolivarianismo, com ou sem defeitos – e claro que com – defende-se e contra-ataca. C’est la vie! E é a história, que não é feita dos nossos esquemas mentais atuais.
Imaginem que, em 26 de abril de 1974, o MFA, muito democraticamente, tinha decidido que, um mês depois, haveria um voto popular para o legalizar. Imaginem que, em 26 de abril de 1974, o MFA, muito democraticamente, tinha decidido que, um mês depois, haveria um voto popular para confirmar a matriz ideológica do nosso povo, de dezenas de anos, legalizando ou não o PCP e outros partidos de esquerda radical. Imaginam? E não estou a fantasiar. É o que queriam Spínola e o grande democrata Sá Carneiro (grã-cruz da Ordem da Liberdade), na reunião da Manutenção Militar.
É claro que há princípios a sobreporem-se aos conflitos. Eu posso (e é mesmo) entender que só se vai onde desejo por via revolucionaria (o que não quer dizer armada e violenta, apenas sem respeito pelas regras do adversário). Mas, ao mesmo tempo e indissociavelmente, não querer que essa revolução viole direitos essenciais do indivíduo, a pretexto do maior valor dos direitos sociais. Pode ser uma compatibilização difícil, mas lutarei sempre por ela.
Outra coisa crucial é que a essencialidade da democracia deriva da igualdade dos cidadãos em termos de direito e capacidade de decisão política, necessariamente informada. É hoje, depois da introdução do quarto poder, o aspeto mais problemático, com a crescente, hoje já inadmissível, capacidade dos media e até das redes sociais para manipularem a consciência e autodeterminação individuais. No caso venezuelano, quem pode garantir que está bem informado? Eu, que bem o estudo, de certeza de que não estou.
Depois, a intervenção americana e de seus aliados, que obviamente não é transparente. Não me vou colocar na posição fácil de que a CIA explica tudo. Mas não é verdade de que eram acusados de facciosos e adeptos da teoria da conspiração os que denunciaram o dedo da CIA no golpe de Pinochet?
Afinal, estamos a ser vítimas de um condicionamento ideológico-mediático, maniqueísta, que nos põe perante uma escolha que ninguém parece discutir: democracia ou ditadura. Claro que não gosto de ditadura. Mas quando me contrapõem simplesmente democracia, quero saber o que é democracia. Eu sei que vivo numa democracia formal, amputada, esquecendo (ou à custa de) os marginalizados, feita para mim e para os meus iguais, os privilegiados.
É uma dualidade que se sobrepõe a todas as outras, para mim muito mais importantes. exploradores e explorados, capitalismo e socialismo, esquerda e direita, imperialismo e soberania.
Posso ser e sou muito crítico em relação às limitações dos processos progressistas da América latina e às suas limitações e contradições, de que o melhor exemplo, por que bem pagaram, foi o das condescendências do PT.  Mas tenho presente que a queda de um governo até errado, como o de Dilma ou Maduro, é o passo decisivo para a destruição de um projeto histórico importante. Assim, a minha crítica não é um disfarce para uma abertura aos que pretendem essa destruição, a pretexto da dualidade única imposta hegemonicamente de democracia-ditadura.
Há alturas em que não se pode ser neutro, muito menos quando essa neutralidade é hipócrita, escondida numa nuvem celestial que não tem a ver com o que se passa cá em baixo. Lembro, por exemplo, a atitude de não intervenção da Inglaterra e da França quanto à guerra civil de Espanha. O que está em causa agora, na Venezuela e em muita outra parte, não é democracia ou ditadura. É povo, explorados, maioria; ou oligarcas e privilegiados.

5 comentários:

  1. No essencial, um artigo de grande profundidade, inteligência e cultura política que aplaudo e considero uma contribuição de grande valor no momento actual.E se me é permitido aproveito para explicar que a solidariedade que tenho prestado à venezuela também está longe de poder significar acordo ou apoio a todas as orientações, concepções ou decisões do regime venezuelano. Abraço

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  2. Sugiro-lhe a leitura de um artigo de Boaventura Sousa Santos em Jardim das Delícias, sobre o mesmo tema e a mesma questão:

    http://jardimdasdelicias.blogs.sapo.pt/

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  3. Permita-me que discorde aqui: «...tudo aceitarem com Chávez, mas nunca com a atual política de Maduro.»

    E o que dizer da propaganda e da campanha que a oposição utilizou contra o governo de Maduro (não só na Venezuela), desde o momento da morte de Hugo Chávez? Esta foi talvez a pior campanha e a mais violenta.

    É certo que os socialistas venezuelanos perderam as eleições parlamentares, mas como explicar a campanha usada pela oposição nessas mesmas eleições que foi ao ponto de convocar gente que nunca tinha votado e que até pagou para que votassem?

    Há muito neste processo revolucionário venezuelano. Julgo que quando falamos na Venezuela de hoje, não falamos apenas acerca do seu processo revolucionário, mas também de uma enorme batalha que a humanidade trava naquele ponto do globo, de modo a mostrar ao Mundo que é possível combater o capitalismo e a corrupção, mas que esta luta não se faz com calma e neutralidade. A guerra contra as mentiras do capitalismo e a selvajaria desta oposição violenta é algo que deve ser travada com valentia e muita coragem. Talvez, seja isso que este povo (ao lado de Maduro) está a mostrar e é com essa luta que nos devemos solidarizar.

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    1. Caro comentador,
      A frase completa era "Isto perante uma oposição majoritária por voto livre, respeitadora da legalidade, dedicada aos interesses das grandes massas populacionais. Na versão mais moderada, de acordo com a tradição necrofílica, tudo aceitarem com Chávez, mas nunca com a atual política de Maduro."
      Não é minha opinião, de que tenha de discordar comigo, embora sendo seu direito.
      Referia-me à versão suave da crítica ao bolivarianismo, que fica contra Maduro, com medo hipócrita de tocar em Chávez. Há muito disto, até em comentadores nossos.

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  4. E esqueci-me de dizer que, claro, frase era irónica.

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