terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Sobre a fé e a crença

Vez após outra, eu ateu me tenho desafiado a escrever algumas reflexões sobre a religião. Mais concretamente, como direi adiante, sobre o agnosticismo. O filme “O Silêncio”, de Scorcese, sobre as perseguições aos católicos japoneses missionarizados pelos jesuítas portugueses, bem como os comentários à minha nota breve no Facebook, são bom pretexto. Transcrevo o que escrevi.
“Vi ontem o “Silêncio”, o muito discutido filme de Scorcese sobre a perseguição aos jesuítas portugueses e às suas comunidades católicas, no período de refluxo depois do êxito da missionarização por Francisco Xavier e outros.O filme é um Scorcese e basta dizer isto, quanto à realização, fotografia, direção de atores.O que tem suscitado mais discussão é a temática e o argumento. Desde logo, é histórico que, sob a perseguição, o Pe Cristóvão Ferreira e o Pe Giuseppe Chiara (Sebastião Rodrigues no filme), também jesuíta que o tinha ido procurar, renegaram o seu sacerdócio e a sua fé cristã, tendo sido assimilados pelo poder japonês e usados como exemplo. Mas, como mostra o filme, com que sofrimento pessoal, com que dor ao serem torturados “indiretamente” pela morte dos seus fiéis e, como diz o título, com que desespero pelo silêncio de Deus? Que Deus é este que deixa para o pobre homem a necessidade de uma fé que explique (?) as maiores atrocidades para com os seus filhos diletos, os eleitos de Deus!Neste sentido, o filme é um enorme drama humano que, independentemente de poder ser tido como uma apologia do cristianismo, mais especificamente do catolicismo missionário, prende durante três horas quem, como eu, não é crente mas a quem nada do que é humano é estranho (máxima de Terêncio, mas também de Marx).E nem é uma apologia simplista do cristianismo. Mostra, por exemplo, a diferença entre o espírito idealista católico dos jesuítas e o pragmatismo comercial, burguês e protestante, não prosélito, dos holandeses. Discute muito bem a importância política e nacional da entrada de uma fé estrangeira e perturbadora da ordem política e social, nomeadamente por dar algum alento à revolta dos camponeses que era necessário manter submissos.E, filosoficamente muito interessante, aborda a questão do absurdo da conceção da “verdade” religiosa, da superioridade de uma crença em relação a outra, principalmente na oposição entre uma religião de “remuneração com o paraíso”, potencialmente menorizadora da luta humana (embora o filme esteja cheio de heróis mártires) e um budismo oriental de humanismo e aperfeiçoamento pessoal sem sujeição a um deus redentor.Um filme a não perder. Mas demasiadamente complexo e subtil para ser vencedor dos óscares.”
Como declaração de interesses, refiro sucintamente que fui educado com grande presença da religião. Com grande erudição teológica do meu avô, mas tridentino, ortodoxo até mais não e centrado no poder divino da Igreja. Com cultura religiosa aberta dos meus pais, acompanhando os tempos, vaticanistas II. Com convicção e prática minha até por volta dos 14 anos, abandonada por reflexão, não por comodismo ou anticlericalismo. Talvez por isto, a rotura foi radical e não me permitiu o conforto da “crença sem prática” ou do agnosticismo.
Para efeitos práticos, vou distinguir entre crença e fé, embora não esquecendo que há um contínuo entre ambas. Por crença, entendo o acreditar num ser divino omnipotente, redentor, misericordioso para com as nossas fraquezas, acolhedor na paz da vida eterna. A entidade que nos dá, principalmente aos oprimidos e pobres de espírito (no sentido da Montanha) uma perspetiva de superação do sofrimento de uma vida terrena penosa.
Como fé, vou entender uma atitude refletida, filosófica, elaborada, que harmoniza o cosmos com a ideia de um criador, que pode ser crítica em relação a alguma ganga mitológica do cristianismo e da sua irracionalidade, mas que a compatibiliza com a lógica mediante a solução sempre útil do mistério, do milagre, da intervenção omnipotente do criador até para modificar quando quer e pontualmente as leis da natureza que criou (como é que faz isto sem perturbar todo o sistema das leis naturais é que não sei). A margem de conformação pessoal desta fé é larga, dentro do que o milagre ou o mistério infinitamente possibilitam. Imaculada conceição, ressurreição, ascensão, assunção de Maria, milagres de Jesus, tudo bem. Relativismo dos Evangelhos, poder temporal da Igreja, Fátima e tantas outras crianças histéricas videntes, a fé como a refiro protege as pessoas, que não são obrigadas a acreditar no que não é dogma.
A crença é parte da evolução do homem. Do animismo às religiões modernas, o homem, fraco e consciente da sua fraqueza, precisa de proteção de entidades que só podem ser poderosas porque não as vê, só existem numa dimensão que ele projeta para além, mas que só está na sua mente, no imaginário. E a construção vai ao ponto de tanto o homem as querer reais que lhes dá características humanas (super-humanas), para as realizar, até com defeitos execráveis, como na mitologia greco-romana, ou na antropozação terrível da divindade hebreia.
Na grande maioria dos casos, é isto a religião: acolhimento a uma comunidade, no batismo; consagração da milenar célula social da família, até mais biológica que social, em animais não primatas, no casamento; vida eterna, nos rituais da morte.
A morte, a dor insuportável do possível nada futuro, é provavelmente o maior motivo da re-ligião (re-ligare). Eu próprio, na minha idade, sinto por vezes que a minha convicção materialista me causa alguma angústia. Vou acabar mesmo em matéria inerte? Não, sobreviverá a minha memória, e para isto é preciso que os meus atos nesta vida sejam meritórios.
E é este o percurso individual na crença. Não é uma dádiva divina, é um produto cultural, familiar, transmitido de geração em geração, sem questionamento, como tantas outras crenças, valores e hábitos que conformam a nossa cultura. Com raízes culturais e identitárias muito fundas, vai perdendo coerência, prática, mas mantém-se no núcleo da formação cultural, e principalmente emergir quando a fraqueza ou a dor humana busca um conforto supremo.
Coisa mais complicada é a fé elaborada, aquela que os missionários apóstatas do filme põem em discussão. Evidentemente, é domínio da total irracionalidade moderna, científica, sem que eu queira dizer que a ciência é a única fonte válida de conhecimento (não o digo, mas creio nisso). Mas são os próprios homens da fé que querem compatibilizar fé e ciência, como Teillard du Chardin e muitos outros jesuítas atuais com formação científica (lembro-me do meu colega de instituto, Luís Archer, com quem tive discussões muito interessantes e de respeito intelectual mútuo).
E é de recordar o tetralema de Epicuro:
“1) ou Deus quis eliminar o mal e não pôde; 2) ou Deus pôde eliminar o mal e não quis; 3) ou Deus não quis nem pôde; 4) ou Deus quis e pôde.Então, 1) Deus não seria omnipotente; 2) Deus seria malvado, não infinitamente bom; 3) Deus seria tanto impotente como malvado; 4) e então Deus é incoerente e desinteressado, logo não infinitamente perfeito.Logo, não existe deus omnipotente, infinitamente bom e infinitamente perfeito. Logo, como Deus só pode ser isto e não é, Deus não existe.(escrito no séc. III AC)”
Ao contrário do homem vulgar, do simples crente, o homem de fé julga-se dotado da graça de ter fé. A religião deixa de ser uma coisa primariamente humana para ser uma conquista superior, intelectual. O paradoxo, como mostra o filme, é que as crises de fé, no silêncio de Deus, são questionadas “dentro da fé”, num diálogo de surdos com a divindade, em vez de um exercício intelectual metodologicamente correto de distanciamento e de questionamento até às raizes.
Para terminar, a questão importante que deixei expressa, a do ateísmo e do agnosticismo. O agnosticismo é confortável, parece intelectualmente aberto. talvez tenha alguma coisa a ver com uma filosofia maçónica, que também deixa em aberto a crença no supremo arquiteto do universo.
Mas eu não ponho em igualdade a probabilidade (ou melhor, a incerteza) de haver ou não um deus. O agnosticismo põe, postulando que não há forma racional de negar a existência de um deus. Mas isto é uma falácia de inversão. porque é que eu tenho de provar a inexistência de um deus, e não os outros provarem a sua existência? Toda a cosmologia atual nos faz saber ou aporta caminhos para uma explicação do cosmos que não necessita da ideia de num deus. Porque hei-de ter de a considerar, filosoficamente? Os angustiados, em oposição aos ateus, é que têm de explicar porque admitem, embora na dúvida, a hipótese de fazer entrar um deus na explicação do universo.

Obviamente mais próxima é a questão da vida, da mente, afinal de nós próprios. Como já dito, a religião tem muito a ver com isto, com o nosso desejo da imortalidade, da vida para além do biológico. No entanto, nada no conhecimento biológico implica alguma coisa para além da dinâmica da vida como a conhecemos cientificamente. A alma é uma criação do espírito humano, da sua superioridade e também da sua consciência da aparente pequenez material. mas é o que somos. Matéria animada, de um extraordinariamente belo processo que é a vida. que de facto não se extingue com cada ser, porque entretanto se perpetuou na descendência que deixaram. Descendência física mas também psicológica, de cultura, de educação, de afectos, de memórias.

4 comentários:

  1. Irei ver o filme, é o primeiro comentário a fazer. O segundo é decorrente do texto. Não acredito na imortalidade, existe memória e essa somente naqueles em que tocámos, seja pelo lado positivo, seja pelo lado negativo. Mortos esses, não passamos de um número, do qual ninguém saberá jamais algo. A não ser que tenhamos tido alguma proeminência histórica e mesmo assim somente se formos úteis enquanto exemplo aos vencedores!
    A crença numa vida para além desta é gratificante, "resolve" essa eterna questão de "nascermos derrotados, porque morremos"! Não, a derrota não é a morte, é sim o vazio de uma vida, devotada apenas à sobrevivência, mesmo que num patamar de elevado conforto e rendimento, sem outro interesse que não o do seu umbigo! Por isso é preciso manter as bandeiras ao alto, estar lá onde a luta é mais encarniçada, luta pela Dignidade, luta contra a exploração, luta contra a discriminação, luta por um Mundo Novo que se orgulhe de deixar um futuro sempre melhor aos vindouros, humanos ou não!

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  2. O racionalismo iluminista do séc. XVIII assentou uma boa parte das suas bases de sustentação na ideia de que a técnica e a ciência haviam finalmente produzido os ingredientes para uma teoria de tudo, que dispensava consequentemente a intervenção de qualquer elemento não racionalizável na compreensão dos grandes fenómenos do Universo e da vida.
    Trezentos anos depois estamos mais ou menos na mesma quanto a essa teoria do tudo, pese embora o facto de alguns videntes contemporâneos verbalizarem a partir de complexos modelos matemáticos, alegações firmes sobre realidades imaginadas (já que, indo para além das res qui tangit possum, tudo o que está a uns milhões de anos luz não é mais do que feitiçaria moderna); bem intencionada, racionalizada, mas não mais. O que me parece próprio da experiência humana – de todos nós, que partilhamos esta base existencial comum – é que nos inquietemos e interroguemos sobre precisamente aquilo que está para além dos nossos horizontes e que densifica essas duas dimensões que apenas roçamos ao de leve: o tempo e o espaço. Para muitos (e respeitáveis) intelectuais contemporâneos, a fé é uma mera crendice, própria dos fracos e dos que não se conformam com a sua natureza finita. Alicerçam pois o seu ateísmo em raciocínios lógico-dedutivos - os que estão ao nosso alcance em função da nossa, reconhecidamente limitada natureza. Talvez estejam certos. Do que já não comungo com tanto vigor é da natureza acabada das suas demonstrações propositivas, que são apenas o conhecimento do possível, quando, no domínio da fé e da força criadora original, estamos muito fora desses parâmetros limitados.
    Sobram depois igrejas, religiões, crendices, abusos: nada que a natureza humana não esteja, infelizmente em condições de produzir, pese embora a marca de racionalidade que lhe assiste.
    Somos o que somos e vemo-nos com os olhos que possuímos. O que não conseguimos – apesar de milénios de esforços – é abarcar o todo com os nossos braços frágeis. Por tudo isto, creio que sobra pelo menos uma margem sólida para a dúvida legítima.

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  3. Não vou ao facebook e se calhar perco coisas muito interessantes, mas este excelente post bem como 2 os elevados comentários fazem-me vir aqui dizer: era assim que deviam ser todos os blogs.
    Obrigado

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  4. João Manuel! Que orgulho sinto ao ler este texto claro e rico.

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