quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Universidades privadas

Sempre que se fala nas universidades privadas, surgem dois argumentos: o da liberdade de aprender e ensinar, e o da alta qualidade da educação superior privada nos EUA. O primeiro argumento é falacioso, se defendido em abstracto. Também há liberdade de criar bancos, mas isso não legitima as falcatruas do BPN e do BES.
Igualmente desonesto é o segundo argumento, que se refere a um caso único. Na Europa, há uma minoria de universidades privadas (das quais um bom número são concordatárias ou confessionais), nenhuma das quais aparecendo em destaque nos “rankings”. Na América latina, destacam-se pelo seu número, num sistema em que a expansão e diversificação do sistema superior público foram tardias e não correspondendo a uma grande procura.
Num sistema desses, muito desregulado, as instituições privadas são de níveis e natureza muito diversos, mas sendo consensual que muito atrás, em qualidade, das universidades públicas e dirigidas segundo uma lógica predominantemente empresarial, em desfavor da qualidade académica. O melhor exemplo é o do Brasil, em que principalmente as federais, mas também as estatais e até algumas municipais, têm dado saltos de qualidade consideráveis.O cerne da qualidade universitária moderna, em todos os modelos estabelecidos (newmaniano, humboldtiano, mesmo o napoleónico) é o da simbiose entre ensino e investigação. É a grande carência do ensino privado
É certo que há, nos EUA, um modelo bem sucedido, mas muito limitado, o das universidades de ensino (“teaching universities”), que prescindem da investigação para concentrarem todos os recursos na qualidade de ensino. Simplesmente, reconhecendo que um ensino de qualidade só pode ser ministrado por cientistas actualizados, com mentalidade crítica, estas universidades estabelecem acordos com institutos de investigação para recrutamento dos seus docentes.
Da mesma forma, as privadas aplicaram mecanicamente e só nos aspectos formais o que, embora com muitas limitações, foi o processo recente mais marcante de reforma universitária, o de Bolonha. E de nada valem as parangonas sobre a excelência (deixou de haver medianos e medíocres neste país) e a inovação e qualidade dos projectos educativos, em geral (mas também nas públicas) uma cópia das atribuições estipuladas na lei. Conhecem-se alguma verdadeira declaração de missão (“mission statement”)? 
Sujeitas a interesses exclusivamente empresariais, incapazes de obterem financiamento para projectos de qualidade geradores de receitas, sem cultura de angariação de fundos (“fund raising”), apertadas pelos efeitos da crise, com considerável diminuição da procura e das receitas de propinas, as privadas incorrem em três falhas essenciais:
1. Não dispõem de unidades de investigação com qualidade. Custa-me a perceber alguma complacência do sistema nacional de avaliação, agora agravada pela alteração legislativa do ministro Crato, o exigente, que aceita os indicadores de investigação dos docentes fora da universidade, não só os intramuros. Tudo isto é particularmente grave a nível de mestrado e muito mais de doutoramento. Se os orientadores trabalham fora, que investigação de tese, e onde, fazem os doutorandos? Os pais não percebem o logro, não têm informação fidedigna nem a noção da importância disto e lá continuam a inscrever os filhos (até a universidade pública conseguir absorver todos, o que não vem longe).
2. Não há carreiras docentes, nem a lei o impõe. Não há provas de progressão, os docentes são admitidos e promovidos a bel-prazer das administrações (não dos órgãos académicos), muitas vezes por razões políticas, de fraternidades ou de influência financeira. Muitos são convidados, sem qualificações académicas. A Autónoma lá tinha lugar reservado para um recente político em queda. Entre tarefas que me foram cometidas, figurou a elaboração de um projecto de estatuto de carreira. Passou pelos órgãos académicos, com grande apoio, mas ficou-se pela administração.
3. A percentagem de docentes em tempo inteiro é mínima. Não se confunda com os que são declarados como tal só para cumprir rácios. A grande maioria entra e sai para dar aulas, não se interessa pelos alunos, não os conhece, não os acompanha, não faz sessões tutoriais. Entretanto, numa situação geral de precariedade, os docentes (com a excepção de uma ou duas universidades) ganham à hora, por tabelas vergonhosas e estão sujeitos a rescisões de contrato a qualquer hora. Os vencimentos dos proprietários nunca são divulgados, mesmo quando os dos docentes e funcionários sofrem cortes.
Voltemos à questão da propriedade, que julgo estar na base de muito disto. A propriedade das instituições de educação superior, que não têm personalidade jurídica própria, pode competir a empresas, fundações e cooperativas. Em todos os casos, tanto quanto julgo saber, há domínio e apropriação de lucros por um número limitado de pessoas, muitas vezes sem cultura académica, sem qualificações ou tendo-as obtido na sua própria universidade, imagina-se com que rigor e isenção de avaliação.
É aqui que se distingue radicalmente o sistema americano. É certo que há muitas universidades privadas, no sentido de instituições com fins lucrativos. Mas aquelas que prestigiam o sistema “privado” estão longe de ser privadas, com lógica de lucro.
As velhas universidades americanas – Harvard, Princeton, Yale, Cornell, etc. – não são propriamente privadas, antes comunitárias. Foram criadas ainda no séc. XVII pelas primeiras comunidades de colonos, com grande autonomia. Em Harvard, um “President” era contratado pelo conselho da comunidade para dirigir a corporação (o governo da universidade), que se mantinha por renovação da sua composição, por meio de cooptação. O conselho de Massachusetts nomeava também um órgão de supervisão, os “overseers”.
Com adaptações, ainda hoje é assim. Passou a haver foi uma outra divisão de poderes, com as atribuições académicas entregues fundamentalmente aos directores ("head") de escola (mestrado e doutoramento) e do colégio (licenciaturas) e o presidente e a corporação dedicados principalmente às relações institucionais e à angariação de fundos. Mas, crucialmente, todas as receitas são reinvestidas e não há distribuição de lucros.
Isto nada tem a ver com a nossa situação. As universidades privadas (e algumas públicas, bem como muitos politécnicos) são fábricas de canudos. A lógica empresarial sobrepõe-se a tudo e os reitores, que deviam ser os defensores da cultura e do rigor académico) são muitas vezes figuras menores, condicionados por falta de alternativas de carreira e ao serviço “de quem manda”.
Julgo que não devia ser permitida a propriedade de universidades por empresas e, no caso de fundações e cooperativas, só com rigoroso escrutínio. Recomendo a leitura do que é um caso diferente e interessante de uma universidade cooperativa aberta, a Universidade de Mondragon, no País Basco, em que a cooperativa é composta por todos os membros da universidade, com igualdade de direitos.
Declaração de interesses – Nestes últimos anos pertenci a uma universidade privada e cheguei a ser pró-reitor. Em todos os cargos que tive sempre pugnei para que estes princípios fossem implementados, e sempre sem sucesso. Tomaram finalmente uma decisão que sabiam ser inaceitável para a minha dignidade. Não tenho mais obrigações de reserva para com a universidade, estou livre para escrever o que penso e julgo ser de interesse público.

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