sábado, 19 de julho de 2014

A agitação no BE

A última entrada deixou omissos alguns pontos, que se retomam agora.
a) A política de alianças e as coincidências
Muita gente verá nesta crise um passo necessário para vencimento da sua tese de “convergência salvadora”. Já muito se escreveu neste blogue a denunciar tal mito e a demonstrar o seu carácter irracional, senão mesmo oportunista. É difícil calcular o impacto desta corrente “cegamente convergencista”, porque só se dá por ela no Facebook, mas com muita insistência. Pode-se caracterizá-la como a mitificação de uma aliança de “esquerda”, uma esquerda considerada por petição de princípio, sem que se proponha sequer as bases de um programa unitário, se avalie a sua viabilidade e se criem condições para um enquadramento social do diálogo interpartidário.
Não é preciso ser-se analista muito arguto para se perceber, lendo o comunicado da Manifesto, que a posição vai buscar apoio a essa corrente de opinião, recorrendo a argumentos tão coxos como a necessidade – mais, a possibilidade – de evitar a aliança à direita do PS por influência de uma nova força política à sua esquerda, mesmo que com dimensão infantil (não só em termos eleitorais…). Esta posição ficou ainda mais manifesta quando Daniel Oliveira resolveu meter-se na briga.
Também não será provavelmente abusivo pensar em algumas coincidências. Primeiro, a simpatia manifestada, nas entrelinhas, pela candidatura de António Costa. Não prenuncia só uma futura aproximação ao PS como até já a aposta no interlocutor. mesmo as opiniões sobre questões cruciais como o euro, a reestruturação da dívida e o Tratado Orçamental têm estado em rápida guinada oportunista.
Outra coincidência poderá ser com o processo de diálogo que o PCP está a promover, envolvendo o BE. Era altura certa para os “convergencistas” se desmarcarem, dando um recado ao PS.
Só pergunto se Daniel Oliveira, depois de ter visto fracassada a sua tentativa de OPA ao BE feita pelo 3D, e não tendo assumido humildemente a posição da coordenadora do 3D de dar por fim as suas actividades, ainda continuará a tentar juntar para o seu projecto muitas pessoas do 3D sem tão sôfrega ambição política. É o comunicado do Fórum Manifesto e as declarações de Ana Drago e de Daniel Oliveira que se referem ao 3D.
b) E o eleitorado?
À falta de sondagens sobre estes acontecimentos, pode dar alguma indicação a pequena amostra das centenas de comentários “online”. Parece patente que há perplexidade e incompreensão, não sendo lógico compatibilizar o desejo de convergência da esquerda com a pulverização partidária, mesmo que se anuncie essa pulverização como passo para unificação seguinte. As pessoas sabem intuitivamente que postos os santos nas suas capelinhas não se transferem para uma igreja comum, mesmo que maior e mais rica. E ainda falta o Podemos em versão portuguesa...
A não ser que parte dos comentários, com muita ambiguidade política e simpatia PS nas entrelinhas da crítica, reflictam a posição de pessoas que ainda têm em comum: i. a ideia não rigorosa de que o PS é um partido de esquerda, adoptando elas  significados românticos e apenas historicistas do termo; ii. uma perspectiva não classista da política e do processo histórico; iii. uma exclusão muito forte, quase visceral, do PCP como força indispensável de qualquer aliança de esquerda.
Ninguém sabe bem o que é e o que vale o eleitorado “de esquerda” do PS, bem como o eleitorado potencial deste novo polo de esquerda moderada que agora aparece, esta nova espécie (como noutros países) a querer compensar a crescente deriva social-liberal do PS. Não há que especular prematuramente. É certo que se sente uma forte sensação de necessidade de mudança urgente, mas há muita coisa incerta, a amadurecer. Certo é que quem anda a agitar as ondas não pode invocar a vontade desconhecida de um eleitorado particular, que nem sequer está delimitado. Invoque-se apenas o seu direito – indiscutível – de intervirem como acham melhor e depois serem responsabilizados, também pela frustração dos eleitores.
c) Conclusão
Repetindo e recompilando muitas propostas já aqui apresentadas,
  1. A aliança entre a esquerda à esquerda do PS e este é importante e indispensável, por muitos anos, para derrotar a ofensiva do capitalismo em fase de neoliberalismo, mas passa, primeiro, pelo reforço de uma aliança mais coesa e consequente entre as forças políticas, sociais e comunitárias e os indivíduos sem partido da esquerda à esquerda do PS.
  2. Por isto, é de lamentar que, estando a decorrer processos de diálogo para fora do partido promovidos tanto pelo PCP como pelo BE, sejam iniciativas separadas e aparentemente não convergentes.
  3. O eixo fulcral da luta popular e patriótica (no bom sentido do termo) contra o domínio neoliberal é um programa comum coerente e mobilizador e não os arranjos partidários para a formação de governos, tudo indica que conjunturais e frágeis.
  4. A tese dos secessionistas de que o seu novo polo político, sem o PCP e o BE, e mais simpático ao PS, contribui decisivamente para impedir uma aliança PS-PSD (eventualmente CDS) é uma falácia. Parece a anedota dos escuteiros que iam ajudar a atravessar a rua a velhinha que não queria atravessar. Os dissidentes devem esclarecer, por imperativo de ética política, como se consegue tal milagre que, para mais, vai contra a experiência política de dezenas de anos.
  5. A defesa do estado social, de que os dissidentes fazem ponto único da sua agenda e por si só justificativa de um governo do PS com esta “nova social-democracia”, é uma bandeira aparentemente consensual. Todavia, isso torna-se numa farsa se não houver entendimento programático em relação aos seus requisitos a montante, nomeadamente a rejeição do Tratado orçamental e a preparação o mais breve possível da restruturação da dívida.
  6. A ideia de que o PS é o centro de uma salvação a curto prazo da política de austeridade, seja a que preço for, é oportunista. A história ensina que há cedências que se pagam caro e que a impaciência não é uma virtude revolucionária, por muito que custe a quem sofre até ao momento do avanço na luta.
  7. É urgente promover-se a realização de uma grande iniciativa unitária marcadamente de esquerda, com "paridade funcional" do PCP e do BE, mais organizações, movimentos sociais, organismos comunitários formais ou informais e cidadãos que partam de pontos essenciais comuns para um programa de esquerda: combate à política de austeridade, reposição dos esbulhos dos últimos três anos, crescimento e emprego; rejeição do tratado orçamental; noção de que a dívida é insustentável e precisa de ser reestruturada, em moldes técnicos a estudar. 
(Na imagem, Lúcio Quíncio Cincinato, exemplo histórico de ética republicana)

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