sábado, 14 de dezembro de 2013

Primárias, a panaceia

Vai por aí grande discussão entusiasmada sobre as eleições primárias e os partidos, como se fossem panaceia para o enquistamento reconhecível dos partidos e seu funcionamento clientelar, em maior ou menor grau. O grande animador desta festa é consabidamente Rui Tavares, homem de obsessões e de sobrevalorização de coisas menores (até a escrita ou não de ofensas terríveis que lhe fizeram). Agora, também Rui Rio. Para quem lê um pouco o que se escreve no Facebook ou nos comentários a entradas de blogues, são também muitas pessoas à espera de que essa notável novidade seja a solução milagrosa para a sua descrença nos partidos.

E também vai por aí grande confusão, não sei se lançada deliberadamente. Só agora abordo isto porque não vejo os promotores da tese ajudarem ao esclarecimento e porque, não os julgando ignorantes… 

A primeira confusão é quanto a eleições primárias para a escolha preliminar de candidatos a apresentar por cada partido a eleições oficiais. Outra coisa, completamente diferente, é a escolha do líder partidário – só faz sentido neste caso de direcção personalizada – por um processo directo mais amplo do que a tradicional eleição indirecta por delegados a um congresso. Devemos falar então de directas, abertas ou fechadas (já lá vamos), mas não de primárias.

As eleições primárias são uma velha tradição americana, a par de outra coisa mais complicada que agora omito, os “caucus”. Como disse, não se destinam a eleger o líder do partido (contra o que se possa pensar, o líder do Partido Democrático não é Obama), mas sim o candidato a presidente a apresentar por cada um dos dois grandes partidos (esqueçamos agora os outros). Mais precisamente, os eleitores das primárias votam em delegados à convenção, que se comprometem a votar em bloco no respectivo candidato. Sendo parte do sistema eleitoral geral e oficial, as primárias são reguladas por lei de cada estado ou consenso e valem para os dois partidos.

Como facilmente se compreende, as primárias estão mais adequadas a sistemas partidariamente bipolarizados e à eleição para cargos uninominais ou por círculos uninominais. Coisas bem à americana mas bem distantes da nossa realidade. 

É certo que Rui Tavares já propôs um sistema de primárias abertas para as autárquicas (não percebi se também para as legislativas e para as suas europeias especialmente importantes). Passaria obrigatoriamente por uma aliança de partidos com programa comum, uma lista conjunta de candidatos, não ordenada, e escolha final da lista por votação dos apoiantes (como se sabe quem são?). Claro que é um caso limitado e circunscrito e parece um truque habilidoso de propaganda, neste momento, para agitar duas bandeiras que caem bem, para mais juntas, a convergência e a abertura.

Outra distinção importante, quanto às primárias, é entre primárias fechadas e abertas (fora alguns casos intermédios ou de compromisso). Nas fechadas, em 18 estados ou territórios, só podem votar para escolha de delegados do partido – e, logo, no candidato a candidato presidencial – os eleitores inscritos em listas oficiais como eleitor de um só partido. Nas abertas, nos restantes 24 casos, não é necessário registo prévio dos eleitores nos cadernos eleitorais de um determinado partido.

Como se evita então o risco de simpatizantes de um partido irem votar no outro, influenciando o resultado desse partido rival – por exemplo, fazendo eleger um candidato eleitoralmente fraco? Posso andar muito distraído, mas ainda não ouvi por cá lembrar o exemplo americano. Mais, ainda há dias ouvi Rui Tavares afirmar que não tinha nada contra isso, que era sinal de vitalidade democrática. A solução, “elementar, meu caro Watson”, é que cada eleitor pode votar nas primárias do partido que entender, mas só pode votar uma vez. Se quiser ir votar nas eleições do adversário, não vota nas suas próprias eleições. Não é muito aliciante.

Mas do que me parece que mais se fala é de outra coisa completamente diferente, a que não se devia de todo chamar primárias. São, como referi, as directas, para eleição do líder do partido. Novamente, podem ser fechadas, sendo eleitores apenas os militantes do partido, ou abertas, com um corpo eleitoral mais alargado, em moldes variáveis.

As directas fechadas não são novidade. Sem que isso tivesse causado qualquer aperfeiçoamento da democracia partidária, são assim eleitos o secretário geral do PS e o presidente do PSD, já tendo sido também anteriormente o presidente do CDS. Pessoalmente, acho que, não sendo membro de nenhum desses partidos (já agora, também de nenhum outro), não devo fazer juízos de valor sobre vantagens e desvantagens de um processo inteiramente do foro de cada partido e que em nada interfere com a democracia, a nível nacional e social.

Então a “libertação e a abertura da prática partidária” (segundo entrevista de Rui Tavares à RDP, 28.11.2013, que não se conseguiu com directas fechadas, vai exigir directas abertas? Elas colocam outros problemas, desde logo de legitimidade. Como acabei de dizer, tudo bem se for coisa de livre decisão de cada partido, mas rejeito liminarmente que possa haver uma imposição legal ou mesmo uma espécie de anátema político a partidos que, muito legitimamente, resolvam adoptar outro método de escolha. Também é uma proposta que conduz à desresponzabilização e duvido de que seja constitucional.

Já que somos mais uma vez forçados a falar de Rui Tavares, veja-se que a sua proposta para o Livre não é tão livre quanto se apregoa. Afinal, ao contrário do que afirmou em entrevistas, não é qualquer pessoa que pode votar para o dirigente do Livre. Como se vê no “site”, o Livre está a recrutar, e não se vê porque não continuará a fazer, membros e apoiantes. Mas afinal, o acesso de apoiantes a eleições primárias restringe-se às verdadeiras primárias, à americana, para escolha de candidatos a eleições autárquicas ou nacionais. A participação em “primárias abertas” – a designação que se anda por aí a usar, Tavares incluído, quando de facto são directas fechadas! – para escolha para cargos internos é limitada aos membros. Qual é então a diferença para as actuais directas dos outros partidos, a não ser que as directas do Livre vão lavar mais branco?

NOTA – Reparem que não falei de prós e contras. Foi de propósito. Preferi falar de demagogia e de abuso na intromissão arrogantemente virtuosa em casa alheia.

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