segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“A Miséria da Política” (passe o exagero)

A actividade política portuguesa, a todos os níveis – institucional, partidária, social – está débil. Débil em intensidade e sobretudo em qualidade. A produção teórica é escassa e superficial, imperando a auto-censura dos autores que dão por certo que ninguém lhes lê um texto de mais do que uma página A4. Exceptua-se a intervenção crítica e informativa no domínio económico, mas nem sempre equilibrada por uma igualmente rigorosa e aprofundada análise política. 
Aliás, escasseiam os analistas políticos de qualidade. A presença na televisão é predominantemente de economistas ou de políticos partidários reformados. Já poucos têm a dizer alguma coisa interessante, muito menos de radical. “D'Alema di' una cosa di sinistra, di' una cosa anche non di sinistra, di civilità… D'Alema di' una cosa, di' qualcosa! Reagisci!” (Nanni Moretti, “Aprile”).
Pior ainda é o trabalho teórico dos partidos. A menos que se confunda com isso simples artigos de opinião ou propostas de acção política concreta, PS, PSD e CDS têm trabalho teórico nulo, o do BE é escasso e o do PCP desgasta-se em incontáveis e indigeríveis comunicados, todos a usar um estilo, linguagem e esquema de raciocínio a quererem convencer que ainda há quem cultive o marxismo-leninismo (o pior é quando os mais arrebatados descambam para o estalinismo) 
Na blogosfera, as “análises” são frequentemente ocas e limitam-se a amplificar em “sound bites” posições elementares, geralmente de indignação emotiva. Quando provêm de grupos proclamado como de debate independente, não é difícil, no Facebook ou nos blogues, fazer corresponder o seu discurso estereotipado ao de partidos políticos, por vezes até em versão mais extrema e reducionista de cartilha. Basta ver que, em redor dessas intervenções esvoaça sempre o mesmo enxame de implacáveis defensores da ortodoxia.
A ação política dos partidos, em oposição, é muito incipiente no uso das novas tecnologias e é de suspeitar que o alcance dos seus sítios, pesados e à imagem dos seus órgãos impressos, fique muito aquém dos seus principais instrumentos de construção de imagem e de respeitabilidade política: a acção institucional (legislativa, autárquica e, distantemente, europeia) e a influência sindical. 
Mas, porque se está a falar de linguagem e comunicação, a situação é desgraçada. Fala-se em família, para os convertidos, repetem-se chavões, não se captam novos públicos. Segundo a comunicação social, isto passa-se principalmente nos “partidos de cassete”. Afinal, estes só diferem, de forma geral, é por não disfarçarem a sua cassete. Todos têm a sua cassete, sem excepção, com a diferença de isso não ser aparente ao homem comum quando a comunicação social a esconde debaixo da intriga partidária ou do seu gosto (e proveito) de pasquim.
A este nível, a política está envelhecida e desacreditada. As pessoas sofrem, estão indignadas, têm protestado mas recuam por não verem consequências. É preciso alimentar e organizar uma uma atitude de protesto, mas, a prazo de uma legislatura ou desta fase do ciclo económico europeu, não vai ser possível reunir as condições objectivas e subjectivas para isso, nomeadamente a constituição de um “partido novo” realmente alternativo (o que, por isso mesmo, não é o mesmo que um partido novo). 
Talvez mais imperioso nesta fase, até uma alternativa partidária credível, talvez obrigatoriamente num novo contexto do sistema partidário e de expressão da democracia, é enquadrar e não deixar desencaminhar-se a desafecção em relação à política, ao sistema partidário. Note-se que enquanto esta desafectação ficar pelo aumento da abstenção e dos votos brancos e nulos ao menos pode haver razões para que muita gente reflicta. (Nota: sobre a dualidade descontentamento-desafecção, ver o muito bom artigo em El País de José Ramón Montero e Mariano Torcal Oriente, professores universitários espanhóis, “No es el descontento, es la desafección”).
Partidos novos estão a aparecer todos os dias, uns obviamente condenados ao insucesso, outros como arranjos e rearranjos espúrios de grupos e formações sem relações consistentes entre si (lembram-se das críticas de Daniel Oliveira a Rui Tavares e ao LIVRE?). Tudo se esquece quando há uma boleia legal tão ingénua como a do LIVRE. Programas vagos, e embalados em personalismos, devaneios e optimismo exagerado por uso de números que ainda ninguém sabe analizar, como os de subscritores de petições ou de “gosto” no Facebook. Repare-se, por exemplo, que o Tempo de Avançar vai com 6700 “gostos” mas só 3700 subscritores, sempre menos do que os 7500 que, no mínimo, são subscritores do LIVRE.
Iniciativas da sociedade civil, movimentos sociais e culturais, associações comunitárias, etc., poderiam ter um papel importante na luta contra a desafecção da política e, em unidade com os partidos e outros corpos sociais, ir desbravando o terreno para uma absolutamente necessária reconversão do sistema político. Não se perca tempo em exaustivas (e muitas vezes incorrectas) comparações com Syriza e Podemos. Até com a Esquerda Unida não temos termos de comparação. Não há situações irrepetíveis (a este nível do processo histórico) e devemos é fazer o nosso caminho, por vias bem próprias.
Também neste domínio o panorama também não é animador. Temos movimentos respeitáveis e dinamizados por pessoas dedicadas, como o Congresso Democrático das Alternativas ou a Iniciativa Cidadã da Dívida. Nem sempre a situação é clara, embora não se conteste a liberdade de pertença simultânea a diferentes movimentos ou a um partido e um ou movimento, desde que as respectivas normas o permitam e que os demais membros saibam. Por exemplo, é flagrante que há relações de sobreposição entre membros destacados do CDA, do manifesto 3D, no Fórum Manifesto e, agora, tudo junto, no Tempo de Avançar. Têm sido feitas acusações de constituição fechada e clubística das direcções desses movimentos, ficando aberto o campo envenenado da suspeita de controlo por partidos. As pessoas são sempre muito desconfiadas em relação a coisas destas. Gato escaldado…
(NOTA – Pela enésima vez, sustentando-me na minha qualidade de inscrito no Congresso Democrático das Alternativas e tendo em conta a confusão que referi atrás, pergunto: quem são os membros do “núcleo duro” de direcção do CDA? Não deveriam prestar contas e serem regularmente renovados, como em qualquer associação? Não deveriam identificar-se como dirigentes do CDA quando se envolvem na criação de um partido?)
Mas mais importante é a essência e forma das suas actividades. Declarações políticas sobre questões de momento mas facilmente adivinháveis (e ninguém vai ler o que já conhece e onde não há surpresa). Debates que quase fazem lembrar as velhinhas sessões de esclarecimento: quatro oradores na mesa, tanto quanto possível em arranjo tendencial, a dizerem coisas mais do que sabidas por poucas centenas de assistentes sessentões ou setentões que, no fim, cumprem o ritual de fazerem umas perguntas cujas respostas também eles já conhecem.
Se há uma diferença determinante entre Portugal e Espanha, e que em muito impede um Podemos português, é que ele se constitui com grande habilidade política articulando duas componentes, uma das quais a qualidade académica e impacto mediático de um grupo de jovens professores de ciências políticas que resolveram transformar a sua teoria em acção. 
Anote-se que falar de qualidade académica e teórica do grupo de La Tuerka, Iglesias e companheiros, nem lembra falar do “comentarismo” (nem sequer é análise, como se dizia). Em tristes casos, felizmente nem todos, são papagaios de um sistema de comunicação social que se tem de apresentar plural mas que, controlando e comprando como for necessário a imagem distorcida desse pluralismo. Mesmo tecnicamente, em conteúdo, formato, impacto mediático, pouco se compara às tertúlias televisivas espanholas. Pouco mais do que a Quadratura do Círculo e a missa marciana, estafadas, o Prós e Contras e o Expresso da Meia Noite. Pior ainda é o amadorismo e pouca seriedade de muitas figuras populares que confundem dizer umas graçolas com trabalho político.
Quanto se dizia atrás que o sucesso do Podemos tinha duas bases, a segunda era a persistência da actividade, a nível de colectivos inorgânicos, das sequelas do 15-M, o movimento dos acampados ou dos indignados. Em Portugal, falha também a relação entre o impacto de acções de rua – que, obviamente, não podem acontecer todos os dias – e outros tipos de acção política. Assim, a grande manifestação de 12 de Março de 2011 deu origem a um movimento, M12M, que teve um “site” já extinto e que hoje se limita a uma página de Facebook muito pouco animada, assim como um blogue(sítio sem actualização desde 2013. 
Da mesma forma, o Que se Lixe a Troika, esquecido que está o meio milhão de pessoas que pôs na rua (mas reduzido para talvez um décimo seis meses depois), tem um “site” também expirado, um blogue com última actualização em Outubro de 2014 e uma página de Facebook pouco animada, praticamente sem comentários e duas ou três dezenas de “gosto” por “post”. 
Os novos tipos de debate político de movimentos como o 15-M, potencializados pela interacção rápida em rede, podem parecer ingénuos e ineficazes: convocação um pouco ad hoc, agendas imprecisas, condução flexível dos trabalhos. Em vernáculo, uma bagunça, disfarçada com designações aliciantes, como “assembleias cidadãs auto-gestionadas”.
Em resumo, porventura pessimista, mas creio que lúcido.
Há muita coisa gasta, decrépita, na vida política convencional, partidária. Há uma atitude crítica em relação à política que já leva à desafecção. O nível teórico e prática dos estudos políticos é fraco e a análise/comentário entregue, na comunicação social, a amadores sem outras qualificações que não sejam a sua popularidade (vá lá, ainda não temos Beppe Grilo). Novas experiências políticas, de partidos ou movimentos, são suspeitas de incongruência, a justificar talvez reacções de descrença de velhos do Restelo. 
Há remédio? Tem de haver, mesmo que não seja importado, mesmo que tenhamos que esperar revolucionariamente (não é um paradoxo!) pelas condições necessárias. Entretanto, imaginação, precisa-se com urgência.
Declaração de interesses – Pode parecer que sou simpatizante do Podemos. De facto, tenho “sentimentos mistos”. É discussão longa, fica para outra entrada.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Dogmatismo e sectarismo (I)

Por via da página de Facebook da Joana Lopes, dei por um “post”, também no Facebook, de Miguel Tiago, no dia das eleições gregas:
“Se, como parece, a burguesia grega tiver de facto reagrupado no SYPIZA, lá terá o capitalismo mais um balão de oxigénio, quando só mesmo a sua morte nos libertaria o caminho.”
Miguel Tiago é um jovem deputado do PCP e não é a primeira vez que escreve coisas polémicas. Por exemplo, sobre a – por ele – alegada ausência de provas da repressão na praça Tiananmen.
É compreensível que Miguel Tiago e o PCP não tenham felicitado a Syriza, com quem não têm afinidades (ou melhor, têm a afinidade de um inimigo global comum) e nem se pondo, em países diferentes, a convenção mais ou menos hipócrita de saudações entre vencedores e vencidos.
É compreensível, embora um pouco risível, que o PCP felicite o seu homólogo, apesar de numa ocasião em que o Partido Comunista Grego (KKE) pouco tinha para festejar e estava obscurecido pela importância nacional e internacional da vitória da Syriza. De facto, a evolução eleitoral do KKE mostra estagnação, apesar de algumas flutuações, entre 5,9% em 2004 (eleições depois da cisão na Synaspismos) e 5,5% agora. É certo que ganhou 1%, mas os 4,5% de Junho de 2012 tinham sido uma queda brutal dos 8,5% de um mês antes, provavelmente a favor da Syriza.
O que já não é aceitável é que Miguel Tiago resuma dogmaticamente àquele simples parágrafo, e com uma visão rudimentar da dialéctica, a situação complexa que culminou, por agora, nestas eleições. É uma posição esquerdista, de tudo ou nada, de negação da possibilidade de fases no caminho para o socialismo (coisa estranha num membro de um partido que há cerca de 50 anos adoptou o faseamento. Miguel Tiago leu o Rumo à Vitória?). Não se percebe também o que é o reagrupamento da burguesia na Syriza. Como eleitores? Como dirigentes? Como ideólogos ou membros do aparelho cultural do partido? É o extremo da fantasia, ou então toda a campanha feroz feita contra a Syria, no interior e no exterior, foi a mais genial encenação.
Eu tenho-me esforçado por estudar e reflectir sobre esta fase de mudança na vida política europeia (e no mundo), admitindo que o meu conhecimento é muito limitado, ao longe e sem compreender grego. Mas Miguel Tiago ainda fica pior, porque se limita a chavões anti-marxistas (num deputado pelo PCP?) bebidos à letra do homólogo grego. Isto não é pensamento racional, é mera fé.
Antes de prosseguir, uma nota histórica, que já escrevi há dias. Talvez ajude a situar este assunto. Ao contrário da generalidade dos antagonismos na esquerda europeia, que radicam na divisão entre partidos comunistas e sociais-democratas, na oposição e na adesão à I Grande Guerra, a oposição entre a Syriza e o KKE tem origem muito posterior, na invasão da Checoslováquia. A parte do KKE que se tinha exilado, na guerra civil de 1946 e na ditadura dos coronéis, apoiou a invasão e, a partir daí, como o PCP, estabeleceu relações ainda mais estreitas com a URSS. Outra parte, que adoptou a designação KKE-interior por ser constituída principalmente por militantes não exilados, condenou a invasão e aproximou-se dos partidos ditos eurocomunistas (italiano, francês, espanhol e outros menos importantes). Em 2004, ultrapassando esse antagonismo, ambos os partidos coligam-se no fim dos anos 80, mas logo após o colapso da URSS o KKE expulsa um grupo grande de militantes que punha em questão, retrospectivamente, o sistema soviético (e em que se inclui Tsipras e o seu antecessor, Alekos Alavanos). Esta ala permanece na coligação com o KKE-interior, a Synaspismos, que se alarga em 1991 a outras pequenas formações de esquerda e ecologistas. Em 2004, um novo alargamento origina outra coligação, a Syriza, posteriormente convertida em partido, por razões de legislação eleitoral.
Assim, é inconcebível que o Resistir.info, um sítio aparentemente ligado ao PCP, escreva que “os novos sociais-democratas, herdeiros do Pasok, venceram as eleições gregas”. Relacionar a Syriza e o Pasok é ignorância ou desonestidade.
É quase invariável que os acusadores da "Syriza social-democrata", como se vê na cadeia de comentários do referido “post” de Miguel Tiago, se limitem a uma só fonte, o KKE e, particularmente um artigo de Elisseos Vagenas, membro do comité central e responsável pela secção internacional: “SYRIZA: “the left reserve force” of capitalism”. É uma longa diatribe contra a Syriza e o Partido da Esquerda Europeia (partido que deixamos agora de lado), um encadeado de acusações não substanciadas e que por isso, para quem tenta analisar de fora, parecem simples agitprop. Tudo embrulhado num discurso redutor que não fica atrás do nível intelectual da cartilha estalinista ou brejneviana. 
De concreto, o apoio da Syriza aos movimentos de jovens na rua, a desviá-los do enquadramento de classe do movimento dos trabalhadores (Paris, 1968?) e a fomentar uma reacção populista que alimentou a Aurora Dourada. 
Também o incidente da apresentação da candidatura regional de um militante que, depois disso, proferiu um discurso antissemita (e cuja candidatura foi retirada pelo partido). 
Também o facto de a Syriza ter acolhido como militantes membros do Pasok desiludidos. Ainda a acusação da Syriza ao neoliberalismo como causa da crise, assim criando a ilusão de que pode haver um capitalismo bom e um capitalismo mau. 
Também a aceitação pela Syriza de que, mau grado a UE “estar a violar os seus princípios fundadores e objectivos”, continua a justificar-se a sua manutenção, em novos termos, enquanto que o KKE considera a UE como a “jaula do leão” que deve ser destruída. 
Também porque, ao definir como alvo principal a troika ou a Alemanha [JVC: não diz o governo alemão] e ao defender uma aliança dos povos do sul, esconde o seu apoio ao demais, a UE do capital e dos monopólios, e cria no povo ilusões sobre a luta no quadro europeu.
Ainda porque a Syriza só propõe o não pagamento da dívida odiosa, actualmente de 5%, afirmação estranha quando muito se tem repetido que o “haircut” proposto é de 50%.
Há mais, mas isto chega. Não será tudo isto a melhor propaganda que se pode fazer da Syriza?
Este tipo de argumentação também tem sido usado por outros partidos comunistas de “ala dura” ou correntes a eles ligadas. Veja-se o referido texto do Resistir.info: 
“O capital monopolista e financeiro europeu pode ficar tranquilo.  Como sempre, nas situações difíceis, a social-democracia há de lançar uma boia de salvação ao capital.  Os que se elegeram auto-denominam-se "radicais" e "de esquerda".  Mas que esquerda é essa que promete respeitinho para com os banqueiros credores, lealdade à NATO & à UE e recusa a soberania monetária?  É de esquerdas assim, como o Syriza e o Podemos espanhol, que o capital gosta.  Economistas brilhantes – como Yanis Varoufakis, autor do "Minotauro global" – participarão do governo Syriza.  Mas por muito brilhantes que sejam pouco poderão fazer pelo êxito de um governo que capitulou à partida, já no seu programa eleitoral. Registe-se a atitude de um partido sério como o KKE , que não faz nem nunca fez promessas demagógicas de coisas incompatíveis entre si.”
Da mesma forma, muito se disse da aliança com o partido Gregos Independentes, nacionalista e soberania, oposto à política da UE em relação à Grécia. Afinal, fora o KKE, era o único partido com quem o Syriza se podia aliar para o essencial da sua política, a económica e financeira. Quanto aos que falaram cedo de mais (divertiu-me hoje ver, atrasado, o Prós e Contras de segunda-feira), o governo grego respondeu-lhes logo na primeira reunião: subida do salário mínimo, bloqueamento de privatizações já programadas, oposição a sanções à Rússia, medidas para o aumento generalizado do rendimento da população, cuidados de saúde gratuitos para todos os desempregados sem seguro, distribuição de electricidade gratuita a famílias carenciadas, suspensão da mobilidade de funcionários públicos imposta pela troika, etc. Não foram promessas eleitorais de um partido. Foram já decisões de um governo.
E não podia a Syriza ter-se aliado ao KKE? Seria difícil, porque com o dogmatismo e arcaísmo ideológico vem também o sectarismo. É certo que, tendo sempre recusado qualquer colaboração e até um simples encontro com Tsipras, o KKE deu um passo, afirmando que não votaria contra medidas do governo que fossem ao encontro dos interesses dos trabalhadores, mas que também não votaria uma moção de confiança. Seria uma pseudo-aliança mínima, sem empenhamento na acção governamental que facilmente se adivinha duríssima. E, como disse atrás, as feridas na esquerda custam a fechar, tanto mais quanto mais próximas forem as relações de primos desavindos. Não havendo aqui espaço para aprofundar este assunto, remeto para um artigo interessante (em inglês), “Why did Syriza and the KKE fail to reach agreement?”, no sítio de Socialistworld.net.
(Continua)
NOTA – Ao contrário do uso corrente, escrevo “a” Syriza, por ser acrónimo em que a primeira palavra, coligação, é feminina. Da mesma forma “o Pasok, do masculino Movimento.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Pagar para ver

Como mostra a expressão muito usada, a política é uma luta, não um jogo de recreio infantil. E, sendo filosofia, teoria e ideologia, não se resume a isto, bem como a análise objectiva de uma actuação política concreta não deve ser obrigatoriamente influenciada pela perspectiva ética com que a vemos.
Por exemplo, considero, por tudo o que tenho lido e visto em entrevistas televisivas, que Pablo Iglesias e os seus amigos estão a fazer uma experiência social de cuja sinceridade se pode duvidar; que é demagógica; que é incoerente quando conjuga toda uma retórica basista com uma organização que atribui poder real exclusivo a Iglesias e ao seu grupo; que é indefinida quando apertada em problemas difíceis; que joga com dicotomias aclassistas – como gente e casta – e negando a validade da polaridade esquerda-direita; que usa em catadupa “sound bites” que pretendem tocar nos pontos-mola das pessoas e, em suma, propondo uma espécie de política pop. 
No entanto, reconheço a grande qualidade técnica dos académicos de serviço no Podemos, o seu traquejo e talento comunicacional e a habilidade certeira para elencar as posições demagógicas que vão ao encontro do desgosto de muita gente com a política de sistema, mas – ou não fossem demagógicas – sem aprofundamento, sem racionalidade e sem estímulo à análise crítica.
Já agora, uma provocação. Certamente que nenhum dos meus leitores habituais duvida da minha posição ética, política e ideológica em relação ao fascismo e, em caso concreto, o salazarismo. Mas isto não me impede de considerar que Salazar tinha uma notável capacidade política, de príncipe florentino (os outros que sujassem as mãos) e que não é coisa menor durar décadas no poder. Ou então cairia no paradoxo de dizer que tal facto, não se devendo ao seu talento para usar como sabemos os meios para os seus fins, teria então de se dever a incapacidade do povo.
Desculpe-se-me a lapalissada de lembrar que tomar por parvo o adversário ou diminui-lo de qualquer forma pode ter consequências funestas. Vem à cabeça o “Foxcatchers” e a forma como os lutadores estão atentos a que um descuido não resulte em o adversário usar a nossa força contra nós próprios (nunca pratiquei judo, mas julgo que anda por aí perto). Ainda outra analogia, com o xadrez: é indispensável a antecipação e o plano de alternativas.
Vem tudo isto a propósito da última entrada, no que respeita às propostas da Syriza quanto à reestruturação da dívida e à avaliação dessa situação tendo em conta, com  o maior interesse, que partilhamos em Portugal a centralidade dessa questão. Tal como nós, a Syriza está relativamente presa numa contradição: por um lado, a insustentabilidade da dívida, noção que ganha largo terreno na opinião pública; por outro lado, a impopularidade, por receio de consequências e por falta do seu conhecimento, da perspectiva de saída da zona euro. É óbvio que ninguém pode afirmar que as duas propostas podem estar inter-relacionadas.
Por isso, é compreensível que, para fugir à armadilha, a proposta de reestruturação  apresentada por Ricardo Cabral e os seus co-autores procure ser tão precisa e quantificada, como quem diz “vejam, é possível reestruturar mantendo-nos no euro”. É o que a Syriza também pretende, ao conciliar reestruturação e manutenção no euro.
Será possível? Parece impossível ter uma ideia sem se conhecer o decorrer das negociações (no caso grego, também a renegociação do memorando). Não se trata de um jogo solitário, mas de uma luta dura a duas partes. Por isto, o factor determinante de avaliação não é tanto o de se ver quanto dinheiro se propõe reaplicar aqui ou ali, em que políticas, com que montante de “haircut”, isto é, não é tanto uma questão técnica e económica.
É, na Grécia, cá, na Irlanda e na Espanha, escolher os que têm coragem, determinação e coerência política para um combate que vai ser muito duro e que ninguém, honestamente, pode dizer que se passe num jardim florido.
O que os poderes centrais europeus estão a dizer ao povo grego que a saída do euro já não é um tabu e que, portanto, votar na Syriza pode significar a impossibilidade de uma reestruturação colaborativa, sendo então melhor o divórcio. É uma ameaça inadmissível, imperial e antidemocrática, mas, novamente em termos de política real, era de esperar.
Podemos gozar com muita coisa trapalhona no aspecto e modos da Sra Merkel, mas não se pense que é uma política incompetente. Neste momento, está a avaliar se Tsipras está a fazer bluff. E vai pagar para ver.

NOTA – Peço sinceras desculpas a quem me acusar de este texto ser pretencioso como expressão de pedagogismo de banalidades. É que, creiam, não estou certo de que não tenham razão.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

No dia 25, sou grego

Espero que o próximo dia 25 marque uma viragem importante da política europeia dos últimos anos, com a vitória da Syriza e com possíveis impactos nos próximos momentos eleitorais espanhóis (autárquico e legislativo) e irlandês. Infelizmente, por razões que discutirei em breve, noutro dia, não vislumbro esse impacto em Portugal. Por agora, ficam algumas notas soltas.
A história da Syriza é sui generis e eventualmente, para muitos, confusa. Em Portugal, o BE, talvez a formação mais próxima da Syriza, resulta da fusão de grupos relativamente equilibrados em dimensão e com referenciais muito distintos. Na Espanha, a Esquerda Unida (IU) tem uma génese relativamente semelhante à da Syriza, mas já o Podemos é a convergência do resto, ainda activo, do movimento 15 de Maio com uma acção política centralizada e levada a cabo com grande mestria por um conjunto de profissionais das ciências políticas e da comunicação.
Apesar de sucessivas modificações e de evoluções práticas a que não estamos habituados, que chegaram a haver um partido membro de uma coligação por sua vez membro de uma coligação mais larga, há um aspecto central que diferencia a Syriza do Podemos e de pequenas organizações portuguesas ou projectos de organização: a história da Syriza relaciona-se fundamentalmente com o partido comunista (KKE) e não tem nada a ver com o partido socialista (PASOK) nem o elege como fulcro da acção de esquerda (também não o Podemos). Anote-se, como exemplo, que toda a história política de Tsipras se passa na família comunista, primeiro no KKE-interior e depois no Synaspismos (ver a seguir).
Nos anos 60, o KKE tinha grande prestígio e força popular, em virtude do seu papel na resistência e na guerra civil que se lhe seguiu. O golpe dos coronéis atingiu rudemente o KKE, com muitos militantes forçados ao exílio (o KKE do exterior). O partido é também enfraquecido pela cisão na altura da invasão da Checoslováquia, condenada pelas estruturas do interior mas apoiada pelo exterior, ainda hoje “ortodoxo” e representado pelo actual KKE.
Posteriormente, constitui-se em redor do KKE do interior uma coligação, Synaspismos, integrando também organizações mais pequenas: uma fracção expulsa do KKE (incluindo Tsipras) e uma considerável variedade de grupos e movimentos esquerdistas, socialistas de esquerda, ecologistas. Em 2004, novamente se constituem uma coligação, a Syriza (Coligação da Esquerda Radical), mantendo-se como força dominante o Synaspismos e integrando toda a esquerda excepto o KKE, ao mesmo tempo que o Pasok se reduzia vertiginosamente, até um lugar subalterno na actual coligação neoliberal.
À medida que se assistiu ao sucesso eleitoral da Syriza, nos últimos anos, o partido foi apertado em tenaz por dois lados de crítica. Por um lado, aquilo que tem tido expressão intolerável nas últimas semanas, apresentando a Syriza como esquerdista e jogando com a ameaça de represálias por parte do norte central. Mas também, de sectores mais rígidos ideologicamente, a acusação de desvio direitista, com cedência a ditames externos, troikianos, indo alguns até posicionarem a Syriza como social-democrata. Fazem-no alguns como crítica de esquerda, outros vendo a Syria como exemplo pioneiro do que adivinham – e desejam – ser uma vaga europeia de “verdadeira” social-democracia (com Costa em Portugal?).
Pouco importando as etiquetas, a esquerda consequente, moderna e alternativa deve “ver-se” criticamente na Syriza, e depois julgá-la, em função dos ideais e valores, do programa e da atenção a condicionamentos sempre colocados a um partido próximo de uma vitória eleitoral em muito dependente de um novo bloco social hegemónico, politicamente e ideologicamente.
Provavelmente será acusado de leviandade quem, no outro extremo da Europa, sem viver a realidade grega e até sem compreensão da língua em que se escrevem textos fundamentais, se atreva a essa análise. Vale-me apenas a intenção de objectividade e racionalidade, bem como um grande esforço de leitura de muitas centenas de páginas publicadas nos últimos anos.
Sobre ideais e valores, ainda não li nada que permita a suspeição de a Syriza se afastar de uma posição de esquerda consequente, mesmo radical (como está no nome Syriza). Sem entrar agora na discussão do que é hoje esquerda – muito menos, à Podemos, se ainda vale o que chamam metáfora esquerda-direita – valorize-se, por exemplo, que o partido é sempre tido como honesto, coerente e imune a corrupção, carreiristas e falta de ética.
Sintetizar o programa da Syriza, o chamado Programa de Salónica, é impossível neste espaço. Como traços gerais e essenciais: 1. suspensão imediata do memorando, antes e independentemente de negociações com a troika. 2. reestruturação da dívida, “num quadro europeu realista”, com “haircut” da maior parte da dívida e pagamento da restante com indexação ao crescimento. 3. convocação de uma conferência europeia da dívida, como aconteceu em relação à própria Alemanha, em 1953. 4. prioridade a políticas orientadas para os sem-abrigo, os desempregados, as pessoas sem segurança social e as pessoas vivendo sem aquecimento. 5. “quantitative easing” pelo BCE. 6. plano nacional de reconstrução baseado em quatro pilares: a) atacar a crise humanitária; b) rearrancar a economia e promover a justiça fiscal; c) recriar emprego; d) transformar o sistema político para aprofundar a democracia.
É certo que a Syriza tem tido alguns recuos, mais significativamente em relação à recusa de saída do euro, e que tem cultivado um estilo de comunicação tranquilizador. Isto à medida que aumenta o seu peso eleitoral e à beira da vitória, é difícil não dar o benefício da dúvida. Com as sondagens a indicarem um grande apoio à continuação no euro e com toda a campanha estrangeira focada nesta questão, e ainda com a necessidade de atrair eleitorado órfão em virtude do descalabro do Pasok, fica grande margem para se duvidar se esta posição da Syriza não é responsável e tacticamente correcta. 
Afinal, sempre a doença infantil. Quantos dos que acusam agora a Syriza de oportunismo não se revêem na crítica esquerdista ao PCP, há 40 anos, por ter posto a hibernar a expressão “ditadura do proletariado”?
Resta também saber se a Syriza, ficando em primeiro lugar e com bonificação, conseguirá uma aliança maioritária. Contando com pequenos partidos de centro-esquerda, ela ficaria mais fácil com o KKE, mas não parece de esperar. É um filme que conhecemos bem, no que diz respeito a PCP-BE. Já não será mau que o KKE viabilize um governo de esquerda (isto é, Syriza), abstendo-se.
Fica por referir nesta nota uma questão interessante, que ultrapassa a Syriza mas em que ela, por via de Tripsas, tem um papel importante: o Partido da Esquerda Europeia. Veja-se, por exemplo, que, em Portugal, o PCP e o BE se situam no mesmo grupo europarlamentar, mas o BE é membro do PEE e o PCP não.
Permitam-me terminar com uma nota pessoal. Com tudo o que aqui ficou escrito, é compreensível que, se fosse grego, votaria na Syriza. E se isto me servir como referência em Portugal? Que Syriza portuguesa teria o meu voto? Provavelmente nenhum. Claro que não faz sentido relacionar Syriza e PCP, um partido que não consegue ter a juventude, a modernidade e a abertura de espírito da Syriza. Mais provavelmente o BE, mas enredado em sectarismos e com muita irresponsabilidade política, ao contrário da capacidade de diálogo da Syriza, que deu consistência a uma já longa experiência de coligações, sob orientação de correntes diversas derivadas do movimento comunista não alinhado com a URSS.
Quanto a novos partidos, nem falar. Aliás, nem vejo a plataforma Livre, Manifesto e Renovação comunista invocar algum parentesco com a Syriza. Seria despudor, para uma plataforma com objectivo principal de valorizar o PS. Fica, hipoteticamente, um clone do Podemos. Um dos próximos textos será sobre o Podemos, para mim uma construção artificial e demagógica. Se o Podemos é mau, muito mais o seria uma apatetada imitação portuguesa. O que vale é que ninguém a vai conseguir fazer. E, “frankly, I don’t give a damn”.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Novos partidos e partido novo

Cara Joana,
Perguntaste-me (creio que a camaradagem nos permite este tratamento) em comentário na minha página do facebook: “Não precisamos de “novos partidos”. Precisamos de um “partido novo”.» E isto significa…?”
É um trocadilho que muitas vezes uso, quando toda a gente se agita e pia para fundar partidos, mas quando vemos que essas iniciativas são coisas oportunistas e cosméticas, para ganhar um lugarzinho à sombra do grande patrão que só se ri destas habilidades.
Partido novo é, por contraponto a novo partido, uma metáfora para outro termo que eu e muitos amigos usámos no fim dos 80: partido alternativo. Também já escrevi muito sobre isso, por exemplo aqui:
“(…) Abordei a dinâmica e consequências sociais, económicas e culturais das mutações sofridas pelas sociedades industriais. Seria estranho que essas mutações não tivessem tido também efeitos sobre o quadro político e as suas formações tradicionais, sobre as ideologias, os programas, a organização e funcionamento dos partidos.”
“A noção de partido alternativo é todavia ainda ambígua e imprecisa. Esses partidos definem-se ainda principalmente pela negativa, em oposição aos partidos tradicionais. Podemos tentar alinhar algumas possíveis caracterizações parcelares da “alternatividade”: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas” (releve-se a imprecisão do termo), tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização. Algumas destas caracterizações só valem se entendidas por um prisma diferente do habitual, o que introduz um ou- tro factor de imprecisão.”
“A alternatividade não tem em si própria um objectivo histórico. É mais uma atitude ou forma de estar na política, que só faz sentido se ao serviço de um projecto político global. Sem considerar a ideologia como enquistadora e divisionista, mas sem negar o valor teórico, agregado e mobiliador das contribuições ideológicas. Mas, em síntese, só uma ideologia “aberta”, fundamentalmente um esqueleto central de ideias e valores a preencher permanentemente com as mais variadas contribuições, é que poderá corresponder à actual fluidez histórica.
“Neste sentido, consideramos como partido alternativo não apenas um partido com as características fraternas de organização e praxis acima referidas, mas também, e obrigatoriamente, um partido que seja portador de um projecto global e coerente de transformação social e de rotura com o modelo social e económico dominante.”
“Um partido alternativo não se situa facilmente em relação aos outros porque o seu nível, o seu plano, é diferente. Isto não significa, porém, que não tenha que se situar em relação à grande fronteira que continua a separar o que, por comodidade de expressão, continuamos a designar como esquerda e direita. Não interessa agora, nem sempre é fácil (veja-se a actual terminologia a leste) identificar no concreto, em relação a cada partido, o que é esquerda.”
“Na vastidão do horizonte da mudança, as ideias e aspirações que darão corpo teórico a um novo projecto de Esquerda, a um projecto de novo socialismo, não virão apenas das formações políticas . Virão também, e cada vez mais, dos mais variados campos de análise da sociedade actual, com realce para as ciências sociais, e da convergência das múltiplas lutas e intervenções sectoriais que questionam a sociedade actual, no domínio cultural, dos direitos humanos, da defesa do ambiente, da defesa da paz, do património, da luta por interesses comunitários e regionais, etc.
Em coerência com a actual situação histórica, a renovação da Esquerda, com a criação de novos “partidos alternativos”, deve caracterizar–se fundamentalmente por:
a) uma atitude de abertura ao recolocar de todas as grandes questões, como por exemplo a análise crítica do industrialismo (independentemente do sistema socio-económico), a compatibilização das aspirações individuais e do progresso social, as relações entre riqueza material e qualidade de vida, o conceito de igualdade individual na actual complexidade social, a própria noção de progresso;
b) uma maior dimensão sociológica e psicológica na abordagem dos problemas políticos, um discurso centrado no quotidiano e na sociedade civil e menos na gestão do Estado, uma atitude mais isenta de rigidez e preconceitos ideológicos;
c) a redefinição das prioridades na acção política – ataque ao modelo de sociedade e de desenvolvimento, mais que ao sistema económico-social; defesa de uma solidariedade social mais ampla que o tradicional confronto de classes; limitação do peso do Estado, mas sem excessos liberalistas, perversores da igualdade de oportunidades e da solidariedade; maior ênfase em tudo o que respeita à concretização dos direitos de cidadania e à efectivação de uma verdadeira democracia participada.”
Este artigo está datado e postula que é ainda possível congregar forças de esquerda (como se considerava à data, para acções transversais transformadoras). Em 25 anos, mudou muito, mas, sendo optimista, creio que se manteve ou reforçou o sentido de cidadania das pessoas e a rejeição da podridão dos partidos tradicionais, o privilégio aos movimentos sociais. Por outro lado, as pessoas estão cada vez mais indignadas com a corrupção, com a porta giratória, com o engano do que tinham por esquerda, a social-democracia aliada ao neo-liberalismo.
Desconfiam de novos partidos encabeçados por jovens aprendizes da mesma escola. Falo por isso de “partido novo”. Faz sentido? Honestamente, não sei.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os equívocos do populismo

Tinha-me comprometido a escrever sobre o Podemos, um fenómeno político que me deixa perplexo, por vezes desagradado e ao mesmo tempo me suscita reflexões interessantes e instrutivas. Foi o que se passou, por exemplo, na última sexta feira, na sessão organizada pelo BE.
No entanto, antes de escrever sobre o Podemos, parece-me útil limpar algum mato que tem contaminado a discussão, misturando, a propósito e a despropósito, um termo muito ambíguo, o populismo. Não gosto dele. Ao longo de dezenas de anos, vi usá-lo com significados diferentes, que confundem. E, agora, até o vejo referido, bipolarmente, a uma situação particular, a da União Europeia. É difícil entendermo-nos.
Passando rapidamente, ao longo da história, pelos poíticos que governaram, com respeito pelas regras dos seus sistemas, mas a favor do povo, contra a aristocracia, como os romanos Públio, Druso, Rufo, Catilina, Mário, César, chegamos aos que, o fizeram com base em poder pessoal e ditatorial. Na Europa, um exemplo é o reformismo napoleónico ou bismarkiano, mas mais frequentemente intitulado (leia-se Marx) de bonapartismo. O poder legislativo perde poder para o executivo, mas este procura construir uma imagem carismática de um representante popular.
Próximo desta concepção – e era o exemplo que tínhamos em mente na minha juventude – foi o populismo latino-americano, fundamentalmente o Estado Novo de Getúlio e o peronismo. O elemento central da sua definição é uma relação indissociável de autoritarismo demagógico e carismático (e francas simpatias com os fascismos europeus) com um suporte de progressismo e de medidas sociais de cariz popular – mas também não foi o que fizeram os fascismo europeus?. Quem lê Graciliano Ramos horroriza-se com o “Tarrafal” getuliano onde estavam os presos comunistas do Getúlio. Também nos lembramos da entrega aos nazis, para ser morta, da mulher do secretário geral comunista, Luís Carlos Prestes.
No entanto, restaurada a democracia depois da guerra, Getulio foi eleito esmagadoramente, promoveu reformas sociais importantes (férias pagas, salário mínimo) e nacionalizações e, com isto, foi impiedosamente perseguido pelos interesses oligárquicos e pela imprensa, que o acossaram até ao suicídio.
(Tenho um estimado amigo brasileiro com quem partilho grandes afinidades da nossa juventude coetânea. Na universidade, andou, com responsabilidades, pelos meios comunistas. Andou na resistência ao golpe militar de 64. Depois.muito próximo de Brizola, foi cofundador do PDT, mas de que já é crítico pela esquerda. Tem grande admiração pelo Getúlio do pós-guerra. Mas nunca me conseguiu explicar como situa o Estado Novo. Será com a provocação deste “post”?) 
Nesta confusão, eram os próprios populistas que se apresentavam como desafiadoras da democracia clássica, com uma representividade fundamentadada diferentemente: a democracia encarna-se num movimento político que demonstre representar os interesses das classes populares – e por elas seja reconhecido como tal na rua e na movimentação social –, sem as limitações formais clássicas e poliárquicas da democracia liberal, afinal sujeita, de uma forma ou outra, à imposição de uma minoria económica à “classe política”.
Os governos e movimentos progressistas actuais (a Venezuela, o Equador, a Bolívia, o Uruguai, menos o Brasil, no futuro talvez a Argentina e o Chile) são herdeiros directos desse populismo? Creio que só vestigialmente. Em primeiro lugar, são governos legalistas que, apesar do que diz a imprensa, só reprimem uma oposição muito forte por medidas estritamente legais. Em segundo lugar, porque têm de lutar com aspectos novos do imperialismo – globalização, predação, dívida. Em terceiro lugar, porque ainda é frágil a teorização que dê coerência a essa acção políica progressista e anti-imperialista. O chamado “Socialismo de século XXI" está cheio de contradições e o seu ideólogo, o alemão Heinz Dieterich, marxista e estudioso crítico do fim da União Soviética, acabou por cortar as relações de colaboração com Hugo Chávez.
No entanto, sendo progressistas, não os podemos considera ainda como socialistas. As suas políicas sociais avançadas não têm posto em causa a estratificação social, a enorme disparidade da distribuição da riqueza, a não apropriação estatal da propriedade de sectores estratégicos. O caso exemplar é o do Brasil, em que o inegável progresso do nível de vida das classes populares mais desfavorecidas não foi acompanhado por uma revolução do sistema económico.
Como se classificam estes países? Ditaduras populistas, como são apodados por toda a máquina comunicacional ao serviço dos interesses dos poderosos? Ou novas construções de poder popular? Não sendo socialistas, prefiro chamar-lhe “países progressistas anti-imperialistas” ou regimes anti-oligárquicos.
Isto também marca outra diferença, também terminológica. Na Europa. o termo populista está associado a governos que não estão no poder, que não mostraram ainda esse eventual carácter ”populista”, sem medidas a favor do povo já concretizadas. Casos exemplares são o 5 estralas italiano e, com mais ênfase na denúncia demagógica de podridão do Estado,mas sem alternativas, como tudo o que venha a ser, em Portugal, a corte de Marinho (e) Pinto. Não têm um programa coerente, não se lhes vê facilmente o posicionamento em relação às questões económicas e sociais, usam os aspectos mais epidérmicos do descontentamento (corrupção, escândalos, benefícios) para ganhar votos. A isto, em vez de populismo, prefiro chamar demagogismo.
Aliás, não faz sentido falar em populismo, ou melhor demagogismo, de esquerda e de direita. O demagogismo é um método poliico de manipulação, por natureza avesso ao debate que caracteriza as ideologias e assenta fundamentalmente no carisma e na capacidade oratória e persuasiva dos líderes. Nos tempos modernos, só dispensa as camisas castanhas ou pretas.
O populismo apresenta obras que lhe ganham apoio real. O demagogismo faz discursos, que lhe ganham votos iliusórios.
Mais desrazoável é outra atribuição do termo populismo, em termos de oposição à União europeia e ao euro. Não consigo descortinar a razão. A consequência, a acrescentar a confusão, é ter de se distinguir o “populismo” de esquerda do grupo parlamentar GUE/NGL, a que pertencem os eurodeputados do PCP, do BE, do Syriza, do Podemos; e os “populistas” de direita, fascisantes e xenófobos, como a Frente Nacional francesa e o UKIP inglês.
Continuemos na Europa. A crise que atravessa o sistema político tradicional de democracia parlamentar representativa já vem detrás. No fim dos anos 80, apareceram os partidos alternativos, entre os quais, em Portugal, o renascido MDP, de que já bastante tenho falado. No entanto, a crise ainda era larvar, escrevia que “a alternatividade partidária ainda ainda se define principalmente pela negativa, em oposição aos partidos tradicionais. Podemos tentar alinhar algumas possíveis caracterizações parcelares da “alternatividade”: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas” (releve-se a imprecisão do termo), tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização.”
Ainda hoje, com base nisto, costumo dizer que, mais do que ”um novo partido”, precisamos de “um partido novo”.
Hoje, já estamos perante uma crise da representação política, de uma crise do sistema democrático parlamentar. 
As pessoas não se sentem representadas, têm vergonha de quem elegeram mas não puderam fazer outra coisa, vêem as maioria dos políticos afogados num pântano de incompetência da formação nas jotas, de carreirismo, de paralelismo e clientelismo no partido, de falta de ética, de promiscuidade com os negócios.
Vêem que os milhões de pessoas simples, honestas, trabalhadoras, estão dominadas por uma oligarquia que se autoprotege, que dirige a vida pública e governa os bens nacionais, que vão todos aos clubes internacionais mais ou menos secretos que governam o mundo, que uma vez um outra vez outro vão deixar a mão de Merkel e outros que tal. É a oligarquia, que Podemos popularizou agora com o nome de “casta”.
É sintomática a preocupação de muitos políticos, a cada escândalo, em afirmar “que os políticos não são todos iguais”. Também eu o disse muitas vezes, por considerar que essa afirmação contra a “classe política” era típica do demagogismo antidemocrático, com o qual não alinho. Penando melhor, não devo ter tantos escrúpulos. Em vez dessa proclamação, os deputados honestos têm o dever é de corrigir o sistema, a começar pelos vícios do seu próprio partido, a falta de elaboração ideológica, de reflexão.
A democracia representativa está em crise, mas devo admitir que não vislumbro bem o que poderão ser, no concreto, as suas alternativas – democracia participativa, democracia com forte componente de democracia directa, democracia assente nos corpos intermédios? Sei que todas têm vantagens e também inconvenientes, até grandes limitações práticas. 
Essencial é que o poder seja devolvido ao povo e que a oligarquia deixe de sequestrar a democracia.
E dito tudo isto, e vindo tudo a propósito do Podemos, o que é o Podemos? Populista? Demagogista? Progressista? Neo-socialista? Alternativo?
Fica para a próxima.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O que é a esquerda?

Como disse no último texto, toda o rigor intelectual e histórico da nossa discussão política actual esbarra numa pergunta difícil: o que é a esquerda? 
Para uns, é uma categoria política estável, que enquadra a priori formações políticas, sem olhar para a evolução político-social e que as fixa nessa classificação. Para outros, é uma metáfora, um conjunto de indicadores que, a cada momento, e em tensão dialéctica, ajudam a localizar e a definir na prática formações políticas e sociais, bem como mentalidades e expressões culturais.
E até pode acontecer que, em certas circunstâncias, o purismo louvável dos que querem ser intelectualmente honestos e que se referem à esquerda se choque com o pragmatismo de a melhor defesa dessa esquerda seja, em certas condições de combate ideológico, ajustar ao sentido comum o uso do termo esquerda. Lembrando o gato de Deng Xiaoping.
Como é bem sabido, o termo esquerda vem da Revolução francesa, dos lugares ocupados na assembleia pela ala radical, do terceiro estado. Tão forte é a metáfora que muito depois, na nossa constituinte, foi fácil colocar no plenário os partidos, por essa convenção.
Na essência da metáfora, está o respeito escrupuloso pelos três princípios, igualdade, liberdade, fraternidade. Mas também as suas consequências políticas práticas, na altura: a destituição do rei, a abolição dos direitos senhoriais, o livre-pensamento.
A seguir, a dicotomia esquerda-direita evolui sempre em relação à situação histórica concreta: emergência dos movimentos de trabalhadores nas revoluções de 1848, comuna de Paris, social-democracia alemã e francesa e bolcheviques do início do século XX, movimento comunista, social-democracia norte-europeia do pós-guerra, guerrilha latino-americana, movimentos anticoloniais.
Mas não se esqueça que a esta esquerda convencionalmente política se ligaram sempre movimentos menos convencionais, como os de defesa do ambiente, os de defesa dos direitos das minorias sexuais, os pacifistas, os de mobilização comunitária. No conjunto, parece-me que se reúnem num paradigma actual de esquerda, o de transformação social, de um novo humanismo, de protesto anti-sistema, de luta contra a desigualdade e a marginalização.
Por isto, não reconheço proprietários da esquerda, se vista como uma esquerda que, como disse atrás, é uma categoria política estável, que enquadra a priori formações políticas, sem olhar para a evolução político-social e que as fixa nessa classificação.
Depois, há a própria evolução de formações que muitos continuam a aceitar, mesmo que criticamente, como de esquerda. Como é que se pode considerar de esquerda, e com isto elaborar construções mentais que caem pela base, pela sua falsidade, partidos que renegaram completamente essa sua qualidade? Como pensar que eles, mesmo em coligação mas com forças de peso negligível, vão corrigir essa inflexão que fizeram em direcção ao inimigo principal?
Repetindo, é erro grave considerar a dicotomia esquerda-direita como estática. Alguns aspectos sobressaem numa fase, outros noutra. Como exemplo flagrante, há vinte anos, o conflito militar. Hoje, a luta contra o neoliberalismo. O PS foi de esquerda há 40 anos? O PS é de esquerda hoje?
Isto também se articula com o uso de outras categorias. Como e quando usamos hoje os termos trabalhadores, povo, cidadãos, pessoas, gente? Não são cientificamente equivalentes, mas a política, a mobilização das pessoas, o leva.las à conquista do poder, é uma ciência de académicos ou uma arte que aproveita dessa ciência o que interessa para iluminar a acção?
É preciso chegarmos ao povo de esquerda. Quem são?Talvez muitos que nem gostem que lhes chamem assim, que votam centrão, enganados, e estão fartos, mas que sabem o que perderam desde que, há vinte anos, lhes criaram uma ilusão de pote de ouro, que descrêem do sistema, que continuam a ter uma miragem de um utópico PS mas já não acreditam em Seguros e Costas.
Mas que também, indignados, se revoltam só a dialogar com a televisão, que não sabem ler os textos da esquerda intelectual, que nem fazem ideia do que é isso de primárias abertas.
É preciso chegar às pessoas, àquelas que não sabem que são de esquerda e que até nem querem que lhes digam que são.
Era bom que relêssemos alguma coisa sobre o conflito entre mencheviques e bolcheviques, entre Fevereiro e Outubro. E também as teses de Abril. Não é para copiar, mas para reflectir. Como, por exemplo, numa entrevista recente, Pablo Iglesias, do Podemos, ter dito que uma das coisas mais geniais em política tinha sido a síntese de Lénine, “paz, terra, pão”.

Vendo as coisas hoje, e não subestimando a análise estrutural, eu diria que as grandes bandeiras mobilizadoras passam pela compreensão de que toda a miséria política, social e económica passa por duas coisas que não precisam de grandes análises teóricas. 1. O capitalismo devorou a democracia, instalou a corrupção, destruiu a cidadania, construiu um sistema partidário que deixou de representar os cidadãos. 2. O capitalismo instaurou uma ordem económica baseada no garrote económico, na destruição do estado de bem-estar duramente conquistado, o que não se muda sem alívio da dívida e, eventualmente, saída do euro.

A esquerda, hoje, é essencialmente a luta contra estes dois vectores.

Namoro ao PS

Um “post” meu anterior questiona a mais recente iniciativa “convergencista”. Não me daria ao trabalho de continuar em guerras que já não são minhas se não lesse, por exemplo na minha página do Facebook, comentários de amigos que, com generosidade, vão por ondas que, salvo o meu devido respeito, me parecem utópicas ou mesmo oportunistas.
Boa parte das movimentações políticas durante este tempo de troika e de governo obediente têm girado em torno da convergência da esquerda. Fora algumas propostas minoritárias de favorecimento de uma aliança inicial de um núcleo duro de esquerda, como tenho proposto (inicial mas para fortalecimento de um interlocutor táctico com o PS, em fase seguinte), acaba tudo por cair no buraco negro da aliança com o PS.
“Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”.
1. Algumas notas históricas
Se, com facilitismo, datarmos do verão quente de 1975 as dificuldades de relacionamento entre o PCP e o PS, muito dificilmente poderemos atribuir culpas preferenciais. Acusa-se o PCP de sectarismo e triunfalismo, de tentativa de manipulação do MFA em seu favor. Admitamos que sim. Mas então, os que o dizem devem lembrar-se de que o PS inventou o caso República, não era menos dependente dos dinheiros alemães do que o PCP das ajudas de leste, que conspirou com Carlucci, que dividiu o movimento sindical, criando a UGT. Que, depois do 25 de Novembro, destruiu a reforma agrária e a democracia participativa do poder popular. Que, na revisão constitucional juntamente com o PSD, devolveu os monopólios aos anteriores sustentáculos do fascismo.
Por essa época de refluxo, o PCP bateu sempre na tecla do verdadeiro partido socialista e na falta de representação partidária de um largo sector de verdadeiros eleitores socialistas. A meu ver, foi um erro. O PS foi-se afastando cada vez mais dessa imagem de interlocutor idealizada (sinceramente?) pelo PCP e nunca o eleitorado ou os militantes do PS puderam fazer inflectir a política partidária de cedência, aliás na onda de toda a social-democracia europeia. Esperar uma transformação significativa do conjunto da esquerda por essa via é uma ilusão perigosa.
2. O que é a esquerda?
As recentes movimentações político-partidárias têm uma dificuldade evidente, ao procurarem escamotear uma contradição insanável: parte-se do princípio que é inevitável na prática garantir um governo centrado no PS e, para justificar o apoio das “esquerdas amigas”, defende-se, a priori, que esse governo seria de esquerda; mas, face a tantos e tantos desvios e cedências do PS no caminho do neoliberalismo, omite-se essa crítica. Ou então (estão a gozar comigo?) essa tendência natural do PS para o bloco central (veja-se o artigo lamentável de Francisco Assis, hoje, no Público) pode ser facilmente revertida (!!!) pela acção politicamente diletante de quem se oferece antecipadamente ao PS como seu enfeite.
Isto do que é ser esquerda tem muito que se lhe diga. Fica para “post” seguinte.
3. Sentido prático de uma aliança
Desejava poder analisar a atitude política da Candidatura cidadã tendo em conta duas coisas, articuladamente: as suas propostas programáticas e as suas propostas instrumentais. Em relação ao que temos estado a discutir, a política de alianças, a convocatória é deslealmente omissa, mas isto é preenchido pelas várias declarações dos membros destacados: pretende-se constituir uma plataforma que “não tenha medo de governar”, que considere o PS como o irmão mais velho da mesma família e que o traga para posições de esquerda.
Não vou insistir na desmontagem de tão pueril argumentação. E custa-me, porque acredito que estou a ouvir pessoas inteligentes. Mas vejamos. Aceito que os 70000 votos do Livre, concentrados em Lisboa, dêem 2 deputados. Acrescento mais um, generosamente, do 3D, do Manifesto e da Renovação. Só faz sentido esperar alguma coisa disto na base de uma lotaria de ser o que falta para maioria e o PS não ter outra alternativa (Marinho e Pinto, acordos pontuais, etc.).
As posições da convocatória da Convenção para uma candidatura cidadã são quase consensuais, descontando, como vimos, a sua viabilidade em termos de condições políticas e de poder. Quase que se pode ler isto na convocatória.
“Não basta mudar o governo para haver a mudança necessária. As próximas eleições têm de corresponder à vitória de um programa de defesa do Estado Social e do Estado de Direito e de aprofundamento da democracia em Portugal e na Europa. Sabemos em que país queremos viver. Num país que proteja o trabalho com direitos e valorize o conhecimento. Que ajude a economia a ser mais inovadora e mais solidária. Que proteja o ambiente e o território. Que se orgulhe do Estado Social e melhore a sua Escola Pública, o seu Serviço Nacional de Saúde e a sua Segurança Social. Que combata a precariedade, redistribua o rendimento e erradique a pobreza infantil. Onde a igualdade seja o eixo central de um novo contrato social e a alavanca para um novo modelo de desenvolvimento.”
Muito bem, estamos todos de acordo. Mas não basta mudar o governo para que governo? O PS só não basta? Vai ser preciso o PS mais os seus novos amigos? Parece um exercício impossível, ou à gato de Schrödinger, de namorar o PS mas manter a virgindade.
No fim do texto, chegamos ao que parece a chave. Não se trata de programa, de firmeza política, de compromissos de alianças, mas do novo método, pós-moderno, de preparar uma candidatura, num processo às avessas: “elaboração de um programa auscultando os cidadãos, num processo de debate e deliberação público, transparente e informado; uma convocatória a uma candidatura cidadã às próximas eleições legislativas, através de um processo de construção de listas aberto, em eleições primárias.” 
Sempre a forma sempre antes do conteúdo!
NOTA 1 – Isto das primárias, para mais se abertas, é uma burla, coisa de tempos de midiatização da política. Resulta sempre na candidatura privilegiada das figuras conhecidas, independentemente das suas ideias e propostas. Veja-se o destaque de Rui Tavares na lista do Livre às europeias. Para 2015, aposto que, à cabeça, vêm Tavares, Daniel Oliveira e Ana Drago. E que Cipriano Justo, mais ingénuo, fica para trás. Já não tenho idade para estas brincadeiras e a memória dos meus tempos de luta e de tantos camaradas não é compatível com oportunismos.
NOTA 2 – Dedico este texto ao António Martins Coelho, pela seriedade e rigor intelectual como que comentou o meu texto anterior no Facebook, apesar de eu não concordar.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A candidatura cidadã

Em dois dias, 1700 pessoas subscreveram a iniciativa Livre/Manifesto/3D/Renovação Comunista. Pode-lhes ser animador, mas muito pouco pensando só nos 71000 votos do Livre nas últimas europeias.
Por mim, penso que a grande maioria das pessoas está presa pelos estereotipos políticos e não percebe os modismos. Muito menos as piruetas.
A convocatória da convenção para uma candidatura cidadã é um texto redondo e ambíguo. É mais um exemplo do movimento browniano da nossa política actual, de formiguinhas desnorteadas. É mais um exemplo da manifesta falta de quadros poliicos que temos, com profunda formação teórica e com experiência da prática política, quando os que temos já estão na terceira idade (mas isto dará uma próxima entrada). Também é um texto pobre, de gato escondido de rabo de fora, a desprezar a inteligência das pessoas. Deve ser coisa de desconhecimento, de quem pensa que a maioria da “gente” consegue ao menos ler a gramática arrevesada da convocatória.
A convocatória nunca refere o PS, mas sabe-se bem, pelas múltiplas declarações dos seus promotores, que essa candidatura só lhes faz sentido se para entendimento com o PS e com a intenção de trazer o PS para a esquerda (estão a gozar comigo?). Assim.não se pode desligar disto o que diz a convocatória.
Diz a convocatória: “As próximas eleições têm de corresponder à vitória de um programa de defesa do Estado Social e do Estado de Direito e de aprofundamento da democracia em Portugal e na Europa. [blá-blá] (…) Queremos um governo progressista que recuse a austeridade como forma de sair da crise e a passividade como forma de estar na Europa. Que construa um poder democrático que governe para o povo e não seja refém de interesses privados.”
Como escrevi na entrada anterior, “vamos crer, generosamente, que toda a esquerda (à esquerda do PSD) se entende miraculosamente sobre a necessidade e propostas práticas para uma política de emprego, de reposição das perdas salariais e d reformas, de ressustentação do estado de bem-estar, de investimento, de aumento da procura interna, de substituição de importações. A pergunta inevitável (que a direita faz, atrapalhando o PS) é “onde se vai buscar o dinheiro?”. A resposta passa obrigatoriamente pelo serviço da dívida, logo pela reestruturação, pelo tratado orçamental, pelo controlo da banca, eventualmente – pelo que isso não pode ser tabu – pela saída do euro.”
O outro lado da convocatória é cosmético, é um modismo sobre a pós-democracia, um desvario de jovens políticos intelectuais pequeno-burgueses. É a chamada revolução pós-moderna, cibernética, pós-classista, da democracia. É experimentalista, como se fôssemos todos ratos de laboratório. É elitista e tonta, porque pressupõe que todos os cidadãos – e o cidadão é a célula básica da democracia desde a Grécia – tem computador, sabe usar os programas e domina as redes sociais.
Propõem um programa cujo esboço é preparado pela elite (quem?), é sujeito a emendas e propostas na net, que são finalmente discutidas e incorporadas na versão final pela tal elite. Curioso! Fora a net, era exactamente o processo de elaboração das teses para os congressos do PCP!…
Também não podiam deixar de vir as primárias abertas. Não sei quem as inventou, mas são a maior aldrabice da moderna experimentação política. Alguém tinha dúvidas de que, por exemplo, Rui Tavares ia ser, destacadamente, o primeiro candidato do Livre, em primárias abertas?
NOTA – Claro que sei que não devo fazer favores ao inimigo comum atacando os que estão do meu lado da barricada. No entanto, não vejo a acção política na sua dimensão diária, muitas vezes mesquinha, e considero que esta pode ser inimiga da política revolucionária, consequente, transformadora, imbuída de humanismo ético, que ainda hoje me move. Assim, combaterei sempre os oportunistas tanto quanto combato os principais adversários. São farinha do mesmo saco. Tenho pena é dos que são enganados. farei sempre o que puder para os ajudar. Não tomem isto como paternalismo.

Olhar diferente para o mesmo alvo

O artigo que José Vítor Malheiros (JVM) escreve hoje no Público, “Pela convergência de uma esquerda plural”, é, como sempre, articulado e intelectualmente honesto. As minhas discordâncias são, principalmente, por a minha perspectiva geral ser diferente. Os eixos de visão são dois: o do sistema partidário e da política no plano convencional, com rearranjos do sistema; o de uma superação radical desse sistema, esgotado, que eu perfilho e que, como já escrevi aqui em muitas entradas, significa a diferença entre criar um “novo partido” e um “partido novo”. Fica isto para uma entrada a seguir.
Isto está bem expresso no que se passa em Espanha com o Podemos. Numa entrevista que merece atenção, diz Pablo Iglesias que o essencial para a esquerda é atingir as pessoas e que isto ultrapassa a simples constituição de frentes, que se limitam a reuniões convencionais de organizações de esquerda.
Eu próprio, que não sou burro e só uso como definição para isso a incapacidade de reflectir e avançar nas minhas ideias, defendi até há pouco tempo – e até me mexi para isso na net – uma táctica centrada na conjugação de forças partidárias e sociais, sem perda de coesão e consequência.
O pequeno manifesto dessa página recolheu, modestamente, 125 apoios. Não é isto que me faz desistir. Como combinado com os apoiantes, vai ser enviado aos partidos de esquerda à esquerda do PS e a movimentos sociais.
No entanto, reflectindo muito, atormentadamente em fim de vida útil, ou vencido da vida, não me parece que essa seja a via para o êxito. É preciso estar sempre a aquecer a caldeira das ideias novas. Para quem viu um filme que aí passa, vai ser preciso um buraco de minhoca a abrir um caminho para nova dimensão espaço-tempo da políica.
JVM começa por discutir a fragmentação da esquerda (ou à esquerda), com o que estou inteiramente de acordo. Nada tenho contra o aparecimento de novas formações, que podem enriquecer o debate, desde que, pelas regras do sistema, não enfraqueçam o poder eleitoral do conjunto.
Também vejo com simpatia a visão generosa do desejo de convergência de toda esta diversidade de movimentos e grupos de esquerda. Sou é mais cínico e penso sempre no namoro mais ou menos encapotado ao PS, afinal a atração do poder, nem que seja de uma pequena sinecura à mesa do orçamento de Estado.
Escreve JVM que “A convergência, o compromisso, a criação de uma plataforma comum ou de uma frente comum são acções que não exigem identidade entre as organizações mas apenas a partilha de alguns princípios essenciais. O entendimento é possível e necessário entre o que é diferente, com a manutenção de identidades diferentes entre organizações que cooperam, desde que possuam um entendimento estratégico e táctico compatível.” (itálico meu)
Este é o nó górdio de toda a discussão emaranhada que tem havido sobre a unidade de “esquerda”. Vamos crer, generosamente, que toda a esquerda (à esquerda do PSD) se entende miraculosamente sobre a necessidade e propostas práticas para uma política de emprego, de reposição das perdas salariais e d reformas, de ressustentação do estado de bem-estar, de investimento, de aumento da procura interna, de substituição de importações. A pergunta inevitável (que a direita faz, atrapalhando o PS) é “onde se vai buscar o dinheiro?”. A resposta passa obrigatoriamente pelo serviço da dívida, logo pela reestruturação, pelo tratado orçamental, pelo controlo da banca, eventualmente – pelo que isso não pode ser tabu – pela saída do euro.
Este movimento que apareceu agora, mas que se adivinhava, aponta claramente para um entendimento governativo com o PS (e em relação de forças muito desfavorável, quase de enfeite). Subscreveste-o. Muito amigavelmente, e como diria o Mário de Carvalho, “Era Bom que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto”.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O muro de Berlim

A comunicação social celebrou estridentemente a derrota do campo soviético na guerra fria, iniciada, simbolicamente, com a queda do muro de Berlim. Começando por declarar interesses, não sou simpatizante da forma burocratizada de socialismo que se vivia, negando o humanismo marxista que continua a guiar-me. Também que, apesar disso, me desgosta ainda mais o mundo unipolar que os EUA, a NATO e o capitalismo neoliberal conseguiram impor. Que, hoje, alguma resistência contra o imperialismo seja protagonizada por políticos, como Putin, distantes dos valores que perfilho (mas é a política!).
Nestes dias, tem sido difundida uma posição oficial do PCP, publicada no Avante. Creio que, historicamente, e principalmente em relação à vitória “ocidental” na guerra fria, está correcta. No entanto, principalmente pelo estilo, dá azo a muitas críticas. A linguagem é velha e saudosista e recorre a alguns chavões que, mesmo que eventualmente correctos, não pegam em relação a tanta gente matraqueada em sentido oposto. O PCP continua fechado numa linguagem de “langue de bois”.
Veja-se só um exemplo, sempre antes repetido à exaustão: o muro foi erguido para defender Berlim/RDA das provocações e acções de espionagem por parte dos aliados ocidentais. Claro que a resposta de contrapropaganda foi óbvia e conquistou as pessoas: o muro foi erguido para impedir os milhares de alemães de leste "amantes da liberdade" de fugirem para o ocidente (como se não houvesse milhares de quilómetros de fronteira menos defendida, fora de Berlim).
Para mim, tenho como mais provável que o muro foi só uma jogada menor, de disposição de peças, num jogo de xadrez de que Berlim era o tabuleiro (até para conversações secretas e troca de espiões).
Outra passagem notável do artigo do Avante afirma que “manifestações, nomeadamente em Leipzig, que na sua essência reclamavam o aperfeiçoamento do socialismo e não a sua destruição, ganhassem a dinâmica contra-revolucionária que conduziu à precipitação dos acontecimentos e à anexação forçada da RDA pelo governo de Helmut Kohl.” Para mim, é talvez a mais discutível das afirmações deste texto do PCP. Nada a sustenta. Aceitemos, mas com muitas dúvidas minhas, que os levantamentos populares (mas com infiltração CIA/fascismo local) da RDA em 1953, da Hungria em 1956 e da Polónia  de 1981 (o da Checoslováquia de 68 é radicalmente diferente, impulsionado pelo partido) defendem o aperfeiçoamento do socialismo tal como estava estabelecido segundo o modelo soviético.
Em 1989 nada indica um desejo de aperfeiçoamento, mas sim de rotura. Quem andou por esses países, quem encontrava por cá muitos dos seus cidadãos, sentia uma descrença profunda e, pior, o domínio ideológico do adversário em relação aos valores de vida e ao formato da democracia, para além do que agora é tão sentido entre nós, o domínio e o privilégio de uma burocracia dominadora do estado (se fosse militante do Podemos escreveria “a casta”).
É verdade que Cunhal, num congresso do PCP, fez uma análise brilhante da crise final do sistema soviético (mas sem aprofundar as suas raízes no estalinismo). Mas, depois disso, o PCP voltou a embrulhar-se ideologicamente, a ponto de tolerar expressões de neoestalinismo.
O PCP diz também que “não esquece que o povo português encontrou sempre na RDA e no Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) solidariedade para com a sua luta contra o fascismo e para com a Revolução de Abril”. Quanto a isto, estou plenamente de acordo. A gratidão ainda é parte do carácter.